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ÁGUAS ANCESTRAIS, MATE SUA SEDE



Allan Yzumizawa


PREFÁCIO


Este texto traz uma experiência específica do meu corpo, atravessado por infinitas marcações, mas que são insuficientes para determiná-lo. Para além de buscar uma identidade (fixa), assume a experiência como processo de identificação, aceitando a interrogação como elemento de potência criativa, e não como zona de apagamento.


A caminhada narrada e as experiências refletem o que ele pode aparentar. Assim como aquilo que vemos é também aquilo que nos olha, o ato de olhar faz com que ele nunca seja unidirecional, ou seja, trata-se sempre de uma ação dialógica. E é dessa maneira que me municio de argumentos para demonstrar que não se trata de um texto egoico e vaidoso sobre mim. Meu corpo aparecerá nas entrelinhas como uma pavulagem, uma imagem fantástica, desmaterializada, um corpo sem órgãos completado por quem o lê. E, no fim, propõe ao leitor tecer esses aforismas para ressaltar a importância do corpo como ferramenta para apreender o mundo em que se vive, como forma de elaborar pensamentos, reflexões, projeções e ideias.


Vale ressaltar que o presente autor considera uma horizontalidade entre imagem e texto. Dessa forma, reitero a importância que as imagens, aqui presentes, projetam para a compreensão e o desdobramento para o leitor. Dedique-se a elas, tanto quanto se dedicaria ao texto. As imagens podem trazer muitas pistas e elementos dos quais não são possíveis na escrita.




28/01/2018 | Cajueiro da Praia (PI)


Em 2018, fiz uma viagem ao Nordeste com meus avós, percorrendo a rota do litoral desde o Ceará até o Piauí. Sou a quarta geração de imigrantes japoneses. Meus avós, filhos desses imigrantes, nasceram no interior do estado de São Paulo, na zona rural. Cresci no sítio deles, vivendo um estilo de vida simples e conectado à natureza. Aprendi a localizar plantas medicinais, a pescar nos fins de semana com meus tios e minhas brincadeiras envolviam coletar sementes e transformar galhos de árvores de eucalipto em espadas de samurai.


Viajar com meus avós para um novo território foi uma experiência que desafiou nossas subjetividades. Em Barra Grande, no município de Cajueiro da Praia, conhecemos seu Tibira, um homem de aproximadamente 70 anos que herdou a tradição de pesca de curral de seu avô. Essa pesca, que não tinha cunho comercial, era exclusivamente para a família, garantindo sustento para todos. Ser aceito para participar das pescas foi uma honra e uma oportunidade de aprendizado.


Devido à grande variação da maré, que recua quilômetros durante o dia, os pescadores inserem estacas de dois a três metros de altura no mar, formando um desenho em formato de asa de avião, com uma semicircunferência cercada por tela de galinha bem no centro, chamada de chiqueiro. Todos os dias, pela manhã e à noite, ao baixar a maré, eles saem de barco até o curral.



Desenho de curral de pesca

› Desenho do curral de pesca.

Foto: Acervo pessoal.




Dependendo da altura da pessoa, é possível caminhar a pé, com a água batendo nos joelhos.

Eles movem as mãos na água em direção ao chiqueiro, fazendo os peixes nadarem para lá. Uma vez no chiqueiro, dois integrantes seguram uma rede de pesca presa em uma estaca e capturam os peixes, garantindo comida para a família. Alguns peixes (como o baiacu) e arraias são limpos na hora, e as carcaças são devolvidas ao mar. Fui presenteado com um filé de arraia, que se transformou em moqueca, e um camurim (robalo), do qual fizemos sashimi e missoshiro. Levei esses pratos à casa de seu Tibira, mas acho que eles não gostaram muito de comer o peixe cru.


Inicialmente, minha arrogância acadêmica me fez olhar para essa experiência como um acontecimento etnográfico, refletindo sobre o apagamento cultural indígena (devido ao fato de eles não se identificarem como um). No entanto, essa perspectiva foi desafiada por uma experiência transformadora com meus avós. Voltei da pesca do curral por volta das 11 horas da manhã, e minha avó estava cozi- nhando. Ela se sentou ao meu lado, e começamos a conversar sobre seu passado. Naquele dia, contou uma história inédita sobre minha tataravó, que veio ao Brasil com seus filhos. Ela era uma mulher forte, alta, parteira e curandeira. Contava que, em Hokkaido, prendia os filhos acorrentados dentro de casa para evitar que fossem atacados por ursos enquanto trabalhavam na plantação de batata.


Depois de ouvir esses relatos, fui ao Instagram e vi uma postagem sobre uma tatuagem do povo Ainu, indígenas de Hokkaido. A mulher na Foto parecia minha tataravó e posava ao lado de um urso. Perguntei à minha avó se ela sabia sobre os Ainu, e ela respondeu negativamente. Naquele momento, minha arrogância acadêmica ao olhar para os povos daqui refletiu minha própria ignorância sobre minhas origens.






Padrão do povo Ainupresente nas vestimentas attu.

Padrão do povo Ainupresente nas vestimentas attu.





Zezinho Yube. Kene Yuxi,   as voltas do Kene, 2016 (frame de filme)

› Zezinho Yube. Kene Yuxi,

as voltas do Kene, 2016 (frame de filme).









05/03/2018 | São Paulo (SP)


Não consegui dormir sem antes pesquisar tudo sobre os Ainu. Minha ignorância, fruto do apagamento cultural promovido pelo nacionalismo japonês, me perturbava. Fui atrás de pessoas descendentes dos Ainu no Brasil e encontrei o artista Dante Horoiwa, que aceitou conversar comigo. Nós nos encontramos em um café em São Paulo, onde ele narrou seu processo de descoberta identitá- ria. Foi uma conversa revigorante.


Quando perguntei como era ser Ainu no Brasil, ele respondeu: “Descobri que a forma de me conectar com meus antepassados é me reconectar com a terra, com a natureza. Quando estou plantando, mexendo com a terra, sinto que estou conectado com meus ancestrais. Não preciso estar no Japão para isso”. Essas palavras me encantaram e me fizeram olhar para a terra onde nasci de outra maneira. Pertencimento.




Dante Horoiwa, Vacuidade. Acrílica e óleo sobre tela, 127 × 180 cm

› Dante Horoiwa, Vacuidade. Acrílica e óleo sobre tela, 127 × 180 cm.



11/09/2019 | Goiânia (GO)


águas ancestrais, mate sua sede


24/01/2020 | Peruíbe (SP)


nhandewa tsapiká

› Foto: Acervo pessoal.


Movido pelo desejo de aprender e conviver com a natureza, decidi fazer uma vivência na Terra Indígena Piaçaguera, no litoral sul de São Paulo. Fui bem acolhido pela aldeia e comecei a aprender sobre as curas com plantas. Já no segundo dia, muitos me chamavam de primo ou parente. Diziam que eu era nhandewa tsapiká, ou “indígena de olho puxado”, “primo do outro lado do continente”. Era estranho me sentir em casa em um lugar desconhecido. Comecei a aprender tupi-guarani com Luã Apyka, ao mesmo tempo que estudava japonês.




2021 | Sorocaba (SP)


De volta à cidade, após tantas experiências transformadoras, senti a necessidade de produzir algo que dialogasse com meu território. Conheci a história de João de Camargo, um homem preto, milagreiro e importante figura política de Sorocaba do final do século XIX e início do XX. Ao visitar a Igreja de João de Camargo1, senti uma energia forte, acolhedora e suave, uma sensação de paz que atra- vessa o corpo. Bebi da sua água milagrosa e fiz um pedido. Após esse contato, propus uma exposição de arte contemporânea que conectasse e reverenciasse a obra histórica de João de Camargo com a pro- dução de jovens artistas da cidade2.




 Igreja de João de Camargo, Sorocaba (SP).

› Igreja de João de Camargo, Sorocaba (SP).

Foto: Acervo pessoal.




Córrego da água vermelha. A água sagrada de João de Camargo.

› Córrego da água vermelha. A água sagrada de João de Camargo. Foto: Acervo pessoal.







2022 | Conde (PB)


Em 2022, participei de uma residência artística de um mês na praia da Arapuca, litoral sul da Paraíba3. O espaço é o ateliê do artista francês Serge Huot, radicado no Brasil há mais de quarenta anos. Serge mantém um espaço cultural e artístico na vegetação nativa da Paraíba, desenvolvendo esculturas, performances e instalações. Antes de ir para a Paraíba, participei de uma mesa de Jurema em Ourinhos, São Paulo, onde aprendi sobre essa tradição da Paraíba e de Pernambuco. Propus-me a aprender mais sobre essa manifestação durante minha estadia. Dessa forma, visitei a aldeia do povo Tabajara para aprender sobre a tradição da Jurema. Conheci o cacique Carlinhos e pude aprender sobre as tradições do povo Tabajara; em seguida, tive o conhecimento de que a praia onde estava hospedado – atualmente a praia da Arapuca – era um território sagrado para a Jurema.


A partir dos terreiros de grandes mestres, consagrava-se um pé de jurema, responsável por fundar uma cidade encantada. Todas as cidades eram localizadas no interior do estado, havendo somente uma cidade no litoral, chamada Cidade Encantada de Tambaba. Essa cidade é uma das mais importantes pois é um local onde todos os mestres juremeiros são enviados ao fazer a passagem do plano físico. Quando um mestre juremeiro morre, um raio cai do céu em direção às pedras do mar, e de lá são enviados esses seres encantados.


A perspectiva de uma cidade invisível e encantada pôde me provocar a olhar para o território a partir de outras pers- pectivas, que não ocidentais. Dessa forma, convidei três artistas de João Pessoa para conviver comigo na Cidade Encantada de Tambaba para realizar vivências e proposições artísticas para seres não humanos.



Praia de Tambaba, em Conde (PB)

› Praia de Tambaba, em Conde (PB). Foto: Acervo pessoal.



Exercício ka’a, Temporada de Projetos 2023. Paço das Artes,São Paulo (SP).

Exercício ka’a, Temporada de Projetos 2023. Paço das Artes,São Paulo (SP). Foto: Marie Kappel



EPÍLOGO


Circular com o meu corpo pelo território deste país me proporcionou diversos movimentos.

O primeiro é o de estrangeiro, a presença estranha que circula como um antropólogo analisando de maneira exotificante o Outro. Porém, ao mesmo tempo que isso acontecia, meu corpo e minha pavulagem também eram vistos como Outro: aquilo que vemos é aquilo que nos olha, de modo que nossa relação se suspendia, abrindo uma fenda para um terceiro espaço, um hífen (-), entre-lugar. Nem eu nem você, mas algo novo. A partir desse segundo movimento é que a potencialidade do encontro se desdobrava em novas formas de criação, daí a importância do corpo como ferramenta de aprendizado. E esses aprendizados recebi- dos de seres-livros (griôs, xamãs, árvores, rios etc.) nos servem para compreensão do mundo e, consequentemente, para criação de projetos, poéticas, vivências...


Acho que após tais vivências, acabei descobrindo o porquê do meu interesse pela cultura brasileira. Mesmo tendo nascido neste país, sempre fui visto como um estrangeiro, um não pertencente a esta terra. Esse sentimento sempre me afligiu. Durante grande parte da minha vida, quis ser visto como alguém pertencente a esta comunidade, mas minha imagem se distinguia do todo. Foi dessa forma que passei a compre- ender o meu corpo como presença litigiosa, compreendendo a sua importância em circular – de maneira ética e respeitosa – pelos territórios deste país. Descobri que o meu interesse em conhecer as culturas é uma forma de me aproximar de uma comunidade e, consequen- temente, pertencer, mesmo que seja nas frestas do terceiro espaço.



A cidade de Tambaba. Conde (PB)

› A cidade de Tambaba. Conde (PB). Foto: Acervo pessoal.



REFERÊNCIAS:


SALLES, Sandro Guimarães de. À sombra da Jurema encantada: mestres juremeiros na umbanda de Alhandra. Recife: Editora da UFPE, 2010.


CAMPOS, Carlos; FRIOLI, Adolfo. João de Camargo de Sorocaba: o nascimento de uma religião. São Paulo: Editora Senac, 1999.



 

NOTAS

  1. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9ImbUAyQjfQ. Acesso em: 5 set. 2024.

  2. Disponível em: https://operceptos.wordpress.com/2021/10/26/ corpos-da-agua-vermelha/. Acesso em: 5 set. 2024.

  3. Para mais informações sobre a residência, acesse: https://www. youtube.com/watch?v=TS-ut7tdQ7U.EXERCÍCIO Ka’a: proposta de exposição para não humanos. Perceptos, [s.d.]. Disponível em: https://operceptos.wordpress. com/2022/07/18/exercicio-kaa-proposta-de-exposicao-para-nao- humanos/. Acesso em: 5 set. 2024.


 

Allan Yzumizawa


Allan Yzumizawa (São Paulo, 1993), é curador independente, pesquisador e professor. Vive e trabalha em Sorocaba e na Pinacoteca de Piracicaba. Doutorando em História da Arte pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) sob a orientação da Profa. Dra. Michiko Okano, é mestre em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) com a pesquisa intitulada Um corpo que falta: vestígios de ação a partir de um processo curatorial, sob a orientação da Profa. Dra. Sylvia Helena Furegatti, com apoio da Capes. Possui bacharelado em Artes Visuais pela mesma universidade. Membro do Grupo de Estudos Arte Ásia (GEAA), tem interesse nas áreas de Curadoria, Teoria Crítica e estudos pós-coloniais. Como curador, atuou no Museu de Arte Contemporânea de Sorocaba e realizou diversas exposições em instituições pelo Brasil, destacando-se o projeto Exercício Ka’a, premiado na Temporada de Projetos 2023 do Paço das Artes (SP), e Corpos da Água Vermelha, contemplado pelo ProAc-Edital 2021.

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