— Estefania Gavina
O ACHO arquivo é uma grande família, um jardim de fotografias, um território sem fronteiras, em que todos fazemos parte de uma mesma imagem. A fábula do lixo, o fim e o começo de histórias imperfeitas.
ACHO é um arquivo familiar, anônimo, ordinário, palpável, criado para olhar com as mãos, sujar de poeira, sentir as dobras, o cheiro e o sabor dos outros. Fragmentos da des-memória, da amnésia, o esquecimento, a ruptura de vínculos afetivos. As fotografias encontradas vestem a vulnerabilidade do abandono, aguardando a aparição de suas asas, a partir do afeto do artista pesquisador para ganhar novos vôos.
› Imagens da sede e do arquivo ACHO. Foto: Estefania Gavina.
No fundo do esquecimento, nas profundezas do descarte, as fotografias são recuperadas por mãos trabalhadoras.
Um caminho improvável que, por um fio de existência, as furta da morte. J.B., Ado, Renato, Maria, Rodrigo, Cézar, Patrícia, Rosilda, todos fazem parte do futuro possível dessas imagens.
É o andar da fotografia rasgada, para a mão do/a catador/a, uma sacola de plástico, entregue na mão da artista até uma caixa dentro do arquivo. Elas são arquiva- das com o nome da pessoa que as entrega e a data. Assim, a sala do arquivo, situada no Ateliê CASA, é um lugar de sussurros improváveis, de fotografias de intervenções cirúrgicas com paisagens universais, ou imagens do Kama Sutra com as da Capela Sistina.
A história começa em 2014 quando conheço o catador J.B., o papai Noel do bairro onde eu morava no centro de Campinas. Já tinha tentado realizar uma fotografia dele para a qual se recusou firmemente, mas, quando nos encontramos, realizando o mesmo gesto de recolher vestígios de uma casa abandonada, se deu nossa primeira conversa. Ele perguntou se era fotógrafa e em seguida me relatou que tinha acumulado vários álbuns antigos achados no lixo e que os guardava, porque não serviam para ser colocados junto com a reciclagem de papel. A partir desse dia, ele começou a deixar fotografias e álbuns na portaria do meu aparta- mento em troca de um envelope com dinheiro. Assim, todas as semanas, era surpreendida com uma sacola de lixo que me aguardava ao chegar em casa; e J.B. virou meu papai Noel.
› Catador J.B. em frente à sua carroça
› Catador Ado no seu espaço de organização da coleta.
Fotos: Estefania Gavina.
Entre trocas, parcerias e anos, chegamos à sala do ACHO arquivo dentro do Ateliê CASA Campinas. A casa existe pela força do arquivo e pela parceria desde 2017 com a profa. Fabiana Bruno 1.
O sonho das duas foi acolher e compartilhar as imagens órfãs, convidar artistas pesquisadoras para polinizar e acolhê-las. Hoje já estamos na III Edição de Residência Internacional coordenada por Fabiana com cola- boração dos professores Oscar Martinez [Colômbia] e Ângela Berlinde [Portugal]. Mais de 60 artistas foram convidados a pesquisar o precioso arquivo que conta com mais de 20 mil imagens em diferentes formatos [slides, negativos, polaroids, 3×4, cartões-postais, entre outros]. A não catalogação prévia dessas fotografias reserva ao artista pesquisador o direito de destinar poeticamente a vida dessas imagens.
Esse é o arquivo em Campinas. Na cidade que me adotou, que me fez virar artista e mãe de quatro filhos. Essa cidade que era longe de São Paulo, que não tinha a força cultural que tem hoje quando cheguei, há 23 anos. Campinas é o berço do ACHO, da fusão da artista catadora, das catadoras artistas e das pesquisadoras de imagens. Com isso, o arquivo se estabeleceu como um lugar de salvaguarda para aquelas pessoas que não querem jogar as fotografias antigas de seus seres que- ridos, mas também não têm espaço para guardá-las, como Patrícia, que veio de Joanópolis para deixar os dez álbuns de viagens que sua mãe fez com muito carinho durante toda sua vida.
O ACHO vai seguindo os rumos colaborativos de sua existência com novas parcerias e trocas. Desde 2022, estamos colaborando com a Cooperativa Projeto Reciclar, composta de 25 mulheres catadoras que, além de separar as fotografias, estão separando objetos antigos e relíquias de famílias anônimas que são coloca- dos à venda no Ateliê CASA. A renda é revertida integralmente para a Cooperativa. As catadoras separam o lixo reciclável e descobrem no dia a dia tesouros que geram novas possibilidades.
Esse é o grande objetivo deste projeto: pensar e repensar em novas formas de viver juntos. Novos caminhos do fazer artístico, do lugar da não coisa, do desgarrado para sua transforma- ção, colaboração e criação de fios invisíveis, redes subterrâneas que gerem novos brotos, flores desse jardim de arquivo.
NOTA
1 Fabiana Bruno é doutora em Multimeios pelo Instituto de Artes da Unicamp e pós-doutora em Antropologia Social pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas e pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP. Pesquisadora e coordenadora adjunta do LA’GRIMA-IFCH/Unicamp (Laboratório Antropológico de Grafia e Imagem) e pesquisadora colaboradora vinculada ao Departamento de Antropologia do IFCH/ Unicamp. É editora e atua em projetos de fotolivros com a Fotô Editorial, em São Paulo. Coordena e orienta grupos de estudos em fotografia no Ateliê Fotô-SP. Cofundadora e coordenadora de projetos curatoriais do ACHO – Arquivo Coleção de Histórias Ordinárias.
Estefania Gavina
Argentina naturalizada brasileira, vive e trabalha em Campinas, SP desde 2002. Artista e fundadora do espaço cultural Ateliê CASA Campinas. Desde 2017 coordena o arquivo fotográfico ACHO [Arquivo Coleção de Histórias Ordinárias] em parceria com a Profa. Fabiana Bruno e catadores de lixo reciclado da cidade de Campinas. Suas obras foram selecionadas para festivais e exposições internacionais como: Do Juried Artists Show, Brooklyn NYC, 2023, NatBioGallery, Buenos Aires, Argentina, 2023, Festival Foto em Pauta Tiradentes, 2023, 27o Salão de Artes de Praia Grande, 2021, 46o SARP - Salão de Arte de Ribeirão Preto, 2021, FIF_BH Festival Internacional de Fotografia de Belo Horizonte, 2020, 49o Salão de Arte Contemporânea de Piracicaba, 2019. Recebeu os prêmios: Mérito Fotográfico Hercules Florence, 2023, Menção Honrosa PhotoPrix, 2022, Fundo de Investimentos Culturais de Campinas, 2019, Premio Mario Cravo Neto de Fotografia [2019] e Festival de Fotografia Goyazes, 2017.
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