— Camila Fontenele
A última vez que me debrucei sobre uma escrita que projetasse parte da minha prática artística a partir de Sorocaba 1, cidade do interior paulista onde sou radicada desde 1997, foi na 3a Frestas – Trienal de Artes “O rio é uma serpente”, por meio da minha atuação como assistente de curadoria. Derivado da prática curatorial, escrevi o ensaio “A profecia é água escura e misteriosa, sempre presente” 2, em que delineei as guianças utilizadas durante esse percurso que envolveu uma pesquisa aprofundada sobre o território e encontros e conversas entre pessoas de diversas áreas. Isso não quer dizer que antes desse acontecimento as coisas não fossem concebidas aqui, mas talvez tenha sido a primeira vez que consegui organizar certas angústias, coragens e, especialmente, imaginações que permeiam esta cidade.
Assim, para que esta conversa que agora se inicia entre nós possa ocorrer, após cerca de quatro anos desde que me expressei em palavras, às vezes amargas, mas repletas de beleza, sinto que é importante criar um lugar dentro deste lugar, ou ao menos acessar suas partes mais sensíveis e porosas para que a aridez não continue a reduzir o potencial daquilo que possui peso, força e presença. Quando menciono aridez, não quero dizer que, por consequência, o centro, a capital do estado, por exemplo, ganhe destaque. É apenas a constatação de que não me interessa mascarar nada. Posicionar-se a partir daqui [do interior] exige uma coragem imensa para não se deixar sucumbir por aquilo [a cidade] que, devido ao seu medo intrínseco do desconhecido [conservadorismo] e à sede de poder [das famílias que perpetuam seus sobrenomes], aniquila.
› Camila Fontenele. Frames de vídeo da obra Travessia para chegar em um lugar que ainda não tem nome.
A partir disso, imagino ser necessário lembrar das águas sinuosas que percorrem o subterrâneo do asfalto das ruas, muitas vezes nomeadas em homenagem aos bandeirantes. Recordar-se da mesma água, agora conhecida como Córrego da Água Vermelha, mas que outrora foi um rio fluindo nas mãos de João de Camargo 3 (1858-1942) para curar pessoas de diferentes partes do mundo.
A água da chuva que também transbordou para a capela, as casas e encheu quase todas as ruas em janeiro de 2024, denunciando o descaso,a precariedade e, sobretudo, que o que é imenso e vivo não pode ser contido.
É estranho falar sobre a água como se fosse uma ficção especulativa em meio a uma cidade rasgada por rios e permeada pelo trânsito das pessoas, mas que muitas vezes mantém um estado de isolamento, insensibilidade e secura [opressora]. Por causa disso, parece que as coisas não se conectam, ou o fingimento da desconexão acaba se sobrepondo. Falar sobre a liquidez é também discorrer sobre a minha prática artística e a minha travessia de vida. Após tantas mudanças de residência durante a infância, entre bairros distantes, cidades e estados, a água se tornou esse elemento condutor que me auxilia a criar possibilidades de aparição e desaparição.
É nela que penso quando necessito retornar ao lar. Dessa forma, pela minha janela, localizada em um bairro na zona norte da cidade, região periférica de Sorocaba, em meio à gentrificação causada pela construção de loteamentos fechados, costumo piscar os olhos várias vezes até que o horizonte, antes permeado de sobrados e terrenos baldios, se transforme em um mar intensamente azul.
Hipoteticamente, a cidade não poderia se transfazer em um arquipélago, mesmo que os rios retomassem seu curso e áreas, onde as zonas (norte, sul, leste e oeste) se tornassem ilhas. No entanto, talvez possamos imaginar algo similar por meio das divisões líquidas para tentar estabelecer modos outros de percepção e implicação. O poeta, filósofo e romancista martinicano Édouard Glissant (1928-2011), em diálogo com o curador e historiador da arte suíço Hans Ulrich Obrist, em Conversas do arquipélago, publicado pela editora Cobogó, diz que “os arquipélagos possuem a propriedade de difratar, eles produzem diversidade e expansividade, são espaços de relação que admitem todas as incontáveis particularidades” (Glissant; Obrist, 2023, p. 22).
Diante disso, volto a uma indagação oriunda do trabalho “Travessia para chegar em um lugar que ainda não tem nome” 4: como seria inventar um nado para atravessar grandes distâncias dentro de um mesmo lugar? A obra, composta de duas videoartes com duração de 4’41” e 8’20”, respectivamente, explora, através da linguagem audiovisual, da escrita performativa, da paisagem e da dramaturgia sonora, os deslocamentos e as estratégias de sobrevivência necessários para que os corpos racializados, dissidentes corporais e de gênero possam respirar, desaguar e fazer fluir o que a cidade insiste em reter. O trabalho persiste em buscar uma forma de autodefesa que possa desencadear a liberação especulativa das águas da cidade e de uma beleza monstruosa, por meio da coreografia do soco em uma dança furiosa.
Nas videoartes há um pedido para que todos se enfureçam e saibam desferir um soco eficaz nas estruturas – no caso, uma parede branca – que interrompem a fluidez do espaço. Porém, solicita-se que isso seja feito com beleza, pois o que aqueles que detêm o poder querem de nós é que sejamos feios, precários, desorganizados e conformados com a violência sistêmica.
Assim, apesar das mãos constantemente feridas, seja pelos inúmeros deslocamentos da zona norte à zona sul, seja pela dureza das materialidades que compõem a cidade, deve haver um soco capaz de romper e assombrar o que nos assombra. Mas é necessário que seja coletivo, pois, como diz a expressão, uma andorinha sozinha não faz o verão.
Sinto que meus trabalhos estão mergulhados numa espécie de atmosfera que procura prever erupções submarinas que, embora possam parecer “catastróficas” para os mais moderados, abrem caminho para a criação de novas ilhas. Interesso-me por lugares de conflito, onde o confronto coexiste com a capacidade de gerar belezas que sejam consistentes, apesar de tudo isso que insiste em nos amedrontar.
› Camila Fontenele. Frames de vídeo da obra Travessia para chegar em um lugar que ainda não tem nome.
Assim, é mais prazeroso para mim imaginar, como fiz durante uma atividade proposta pelo Laboratório de Ficções Intramundanas do Grupo Foz 5, o transtorno e a transformação que a “aparição” de uma baleia jubarte na frente da Capela do Senhor do Bonfim pode causar. Semelhantemente, as misteriosas viagens de João de Camargo até o litoral o transformaram em um homem enigmático, repleto de segredos profundos provenientes da calunga grande. Portanto, para trabalhar a partir daqui [interior], é necessário lembrar-se do estado líquido das coisas e permitir-se ser atravessado pela imensidão em vez de se limitar às fronteiras construídas pelas “suntuosas” cidades.
Notas
Sorok’aba vem do Tupi-Guarani e significa “lugar de rachadura, terra rasgada”.
Texto disponível em: https://frestas.sescsp.org.br/editorial/a-profecia-e-agua-escura-e-misteriosa-sempre-presente/
Nascido como escravizado, João de Camargo recebeu uma revelação celestial que o incumbiu de estabelecer uma nova religião em Sorocaba. Assim, em 1906 fundou a Igreja da Água Vermelha, que cultua os mortos através do culto à calunga. A capela, construída às margens do rio da Água Vermelha, tem como base os princípios da água, pedra e verdade. No seu primeiro sermão, João de Camargo a denominou “Igreja Negra e Misteriosa da Água Vermelha”. Contudo, para evitar mais perseguições e ordens de prisão por “curandeirismo” – pelo que foi preso 18 vezes –, a capela foi estrategicamente formalizada em 1921 e passou a ser conhecida como “Associação Espírita e Beneficente Capela do Senhor do Bonfim”.
Trabalho viabilizado pelo edital ProAC n. 10/2020 para o streaming “Cultura em Casa”, ainda sem previsão de lançamento. Parte do processo pode ser acessado em: https://www.camilafontenele.com/travessia-para-chegar-em-um-lugar-que-ainda-nao-tem-nome
Durante o Laboratório de Ficções Intramundanas, promovido pelo Grupo Foz, participamos da elaboração de uma notícia especulativa que envolve seres humanos e não humanos. A matéria que criei intitula-se “Mistério da Água Vermelha: Baleia jubarte de 15 metros é encontrada morta próximo à Capela Nosso Senhor do Bonfim”. Disponível em:https://www.instagram.com/p/CuP 3uNvLmR/
Camila Fontenele
Nasceu em São Paulo, em 1990, mas vive em Sorocaba, no interior do estado. Atua de maneira transdisciplinar como trabalhadora da cultura, entre as artes visuais, a fotografia e a pesquisa. Atualmente é curadora, junto a Tiago Gualberto, da 31a Mostra de Arte da Juventude (MAJ). É mestra em Estudos da Condição Humana pela UFSCar, com especialização em Cinema, TV e Vídeo: Estética da Imagem em Movimento pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e bacharel em Comunicação Social: Propaganda e Marketing pela UNISO. Seus principais interesses incluem os estudos do corpo gordo, a fabulação especulativa, as relações interespécies e as metodologias oceânicas.
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