top of page

FRONTEIRAS SÃO TERRITÓRIOS PARA CAMINHANTES

— Maíra Freitas




Para sobreviver às Fronteiras, você deve viver sin fronteras, ser uma encruzilhada. (Gloria Anzaldúa)


Este é um escrito de artista, mas é também um escrito de arte-educadora e de pesquisadora e de curadora. É, ainda, e estruturalmente, um escrito de mãe. E também, e sempre, um escrito de filha órfã. Este é um movimento ao qual poucas vezes posso dedicar tempo: documentar os processos, pensar os plantios antes do feijão chegar ao prato.



Depois do começo


Eu não estou pronta porque sempre estou em movediço movimento, mas eu já não temo muita coisa. Estar em encruzilhada enquanto trabalhadora independente da arte e da cultura do interior, entrecruzando avenidas com modos de fazer distintos, me forjou o corpo para serpentear entre as pedras, me aguçou os sentidos para compreender qual de mim está sendo convocada ao trabalho sem fraturar o que me constitui. Me revelou a fronteira enquanto lugar. Quando a curadora é chamada, vão todas as outras juntas, pensando a expografia para o público que a educadora receberia, olhando para as obras como a artista que mergulharia naquela determinada pesquisa poética e escrevendo o texto como aquela que pesquisa e se vê presenteada com a possibilidade de materializar ideias sem as amarras da escrita acadêmica.


Por muitos anos, a minha formação transdisciplinar foi uma questão negativada pelo contexto neoliberal da ultraespecialização. Ter migrado do cinema para as artes visuais, ter deslizado das salas de aula para a educação não formal parecia fragilizar uma trajetória. A fronteira enquanto lugar me apaziguou com os modos de fazer os trabalhos, e, gradualmente, a transdisciplinaridade se revelou uma forma de estar no mundo. E foi nessa fronteira que conheci a artista e pesquisadora Hilda de Paulo1 e com ela aprendi a beleza sutil do enunciado “Depois de”, prática citacional que a artista utiliza em releituras de obras de companheiras das artes que prepararam a terra antes de grãos chegarem às nossas mãos.



Maíra Freitas

› Maíra FreitasNa hora do almoço, 2024, da série Preparando a janta (2022-atual). Foto: Gabriella Zanardi.





Depois de Aline


Estou vivendo no coração de uma exposição, atuando junto à equipe educativa da itinerância da 35a Bienal – Coreografias do Impossível, no Sesc Campinas2 e convivendo com a obra A água é uma máquina do tempo, de Aline Motta3. Também servi feijão para a janta, limpei a casa, li histórias, lavei roupas, abri espaço para estar presente para uma criança de 9 anos. Na instalação, Aline Motta constrói – a partir da fabulação crítica – um tecido justo entre ferida colonial e luto, esta obra me move em muitos territórios profundos. Em julho deste ano se completaram 20 anos da morte de minha mãe e, também, 9 anos de vida da minha filha, Lilás. A tessitura do Tempo tem se apresentado para mim como uma fronteira entre passado e futuro que se presentifica continuamente na encruzilhada do momento presente. Dessa experiência educativa levo bons encontros, com pessoas generosas e obras potentes. Levo também uma fé inabalável na educação não formal e na juventude; e um desejo pulsante de seguir colocando meu corpo em estado de arte.





Depois de Ana, Brígida e Rubiane



Em novembro de 2023 abrimos o Tempo dos feijões4, minha terceira individual, no Fêmea Fábrica5, espaço independente de Campinas. Dentre o conjunto de obras expostas, trouxe seis inéditas elaboradas com vidro, neste mergulho de experimentar um material ora frágil, ora protetivo e cuja transparência cria fluxos outros nas visualidades e nos visionamentos. Luciara Ribeiro me presenteou, no texto curatorial, com a imagem do sal enquanto doçura ao resgatar a sabedoria popular que afirma que somente conhecemos alguém após comermos um quilo de sal juntas. Temperei feijão para a janta, limpei a casa, li histórias, lavei roupas, abri espaço para estar presente para uma criança de 8 anos.


O Tempo foi a força motriz desta mostra, e o tema ganhou seu lugar em mim no processo intenso que foi compor a equipe curatorial das mostras-irmãs Ana mendieta: silhueta em fogo e terra abrecaminhos (Sesc Pompeia, curadoria adjunta de Hilda de Paulo, curadoria geral de Daniela Labra, 2023-2024). Ter a chance de ver as obras fílmicas de Ana Mendieta6, esta que é referência para tantas de nós do campo da performance e ativistas pela defesa da vida das mulheres e que tantas vezes estudei através de frames impressos, foi um assombro que revelou muitas temporalidades. Acompanhar a monta- gem de Silhuetas (1997) de Brígida Baltar7 me presenteou com a sensação de pertencimento no modo de experimentar materiais e implicar o corpo nas obras. O desejo de elaborar Castiçal é o corpo surgiu deitada ao lado das sillhuetas corpo-casa-corpo de Brígida, nas pedras frias do Sesc Pompeia.


Ter a oportunidade preciosa de assistir à per- formance Speiren (2021)8, de Rubiane Maia com assistência da própria mãe me tocou em lugares muito íntimos, me pôs a fabular como seria minha trajetória se o Tempo me permitis- se ser artista da performance enquanto minha própria mãe ainda estava ao lado. Levei de Ana, Brígida e Rubiane a lição que veio através da voz de Pai Sidnei Nogueira: “o Tempo não é medida, o Tempo é”9.




Maíra Freitas

› Maíra Freitas, Castiçal é o corpo, 2023, da série Preparando a janta (2022-atual). Objeto, dimensões variadas. Vidro, grãos de feijões.Foto: acervo pessoal.




Depois de Lilás


Cozi feijão para a janta, limpei a casa, li histó- rias, lavei roupas, abri espaço para estar presente para uma criança de 7 anos. Em 25 de novembro de 2022, no entremeio da temporada de Lilás10, minha segunda individual que foi acolhida pelo Sesc São Caetano e curada por Luciara Ribeiro, performei a ação Na hora do almoço. À frente das obras Isto não é uma mulher11 e Emersão e fuga do nascimento colonial12 dei corpo a uma pesquisa poética sobre narrativas e memória que, em perspectiva crítica a determinadas ficções de gênero que a música popular brasileira ajudou a construir, tem a canção de Belchior como título e atualiza músicas de trabalho – esse ato ancestral de atravessar rotinas de labor braçal com ritmos e cantos que criam vão e triz no cotidiano.


A ação inicia com um pequeno banco de madeira instalado sobre uma esteira. À frente dele, eu disperso em semicírculo diferentes variedades de grãos de feijão, me sento e inicio o ato de amolar uma faca. A ação é encerrada com a fratura da lâmina da faca seguida por um breve texto sobre cultivar e alimentar com feijão. O meu corpo materno coberto por um body modelador sobreposto pelo meu primeiro sutiã e uma camisola de amamentação, a faca e os feijões carregam em si o gesto de alimentar a prole e algumas das problemáticas sociopolíticas que se instalam como a luta constante de mães solo para resguardar o direito de sua prole por meio da pensão alimentícia.


Com Lilás aprendi lições novas sobre os limites dos materiais, o desafio profundo que é transformar ideias abstratas em obras, muitas lições sobre os processos e as temporalidades da produção de uma exposição, e a rara beleza que reside em poder trazer artistas outras para um projeto – a performer Paola Ribeiro13 ativou Fagia na abertura, e Jocarla Gomes performou Você já olhou para uma mãe hoje? no final da temporada; as artistas pesquisadoras Marta Mencarini e Tatiana Reis ministraram o minicurso Arte, feminismos e maternagens enquanto idealizadoras da pesquisa e mapeamento Arte e Maternagem. Eu carreguei a pesquisadora que me habita junto para ministrar o minicurso Arte e feminismo decolonial – Marcadores sociais da diferença e processos poéticos; e a arte-educadora que reside em mim facilitou a oficina As pedras de ontem, voltada para a primeira infância. Saí profundamente alimentada pela presença de Amanda Filgueiras14, “pedagoga, arte-educadora e artesã”, como ela se apresentou a mim, que partilhou inúmeros relatos sobre a forma como o público se relacionava com a mostra e me presenteou com aquilo que me é mais precioso: construir pontes entre pessoas-sensibilidades. Levei de Lilás a lição de que feijão partilhado tem mais sabor.




Maíra Freitas

› Registro de visita mediada na exposição Lilás. Sesc São Caetano, 2022. Foto: Amanda Filgueiras.





Maíra Freitas

› Vista da exposição Lilás. Sesc São Caetano, 2022. Foto: Ana Pigosso.




Depois de Carolina




Estava de máscara no mercado pensando sobre qual fruta renderia mais porções, assombrada com o preço das coisas e também por receber tão pouco por elaborar uma pesquisa acadêmica. O telefone tocou com um convite para coordenar a formação educativa da itinerância de Carolina Maria de Jesus – um Brasil para os brasileiros que aconteceria no Sesc Sorocaba, em uma primeira parceria com o Instituto Moreira Salles. Calculei a rota, estava há meses negociando uma exposição individual e finalmente os caminhos estavam acontecendo. Aceitei e mergulhei na experiência de estar com uma equipe de jovens mediadoras culturais partilhando práticas educativas e no exercício difícil de modular a linguagem para trazer também contribuições teóricas para o coração da exposição.


Demolhei feijão para a janta, limpei a casa, li histórias, lavei roupas, abri espaço para estar presente para uma criança de 6 anos. Finalizei parte das obras de Lilás, montei e abri a exposição mergulhada em Carolina e com- pletamente atravessada pelo recorte curatorial que alinhavou documentos, textos e obras de origens e práticas tão diversas. Me aproximei do modo de pensar imagens de Luciara Ribeiro, parte da equipe curatorial da mostra em Sorocaba e inteligência-sensibilidade que acompanhou curatorialmente a individual Lilás.

Levei de Carolina Maria de Jesus – um Brasil para os brasileiros o desejo de performar em sua cozinha – carinhosamente havia setorizado a exposição em cômodos e me vinculado fortemente às obras de Sidney Amaral, seu pão de bronze, sua colher com isca, sua frigideira que permitia sonhar nos arranhados do teflon um Brasil outro. Levei também a lição de que um corpo em movimento no meio do mundo não está só.




Maíra Freitas

› Maíra Freitas

O voo do pássaro que é sempre retorno

Quadríptico de pintura expandida, 2.216,5 cm.Transferência fotográfica, acrílica e miçangas sobre tela, 2021.

Foto: Ana Pigosso.





Depois do fim



Eu estou pronta e não temo nada (Audre Lorde)




No quintal coloquei o corpo ao sol depois de empilhar muitos livros sobre um banco e posicionar uma câmera sobre ele. Era 2020, o trabalho educativo em exposições tinha desaparecido do horizonte, as salas de aula do curso de doutorado tinham se revertido em telas, a escola infantil era eu e o medo da morte era constante. Fiz a Foto. Eu tinha decidido tirar os projetos antigos das gavetas, fazer do labor cotidiano de oficineira para uma criança só – a que eu pari – uma espécie de ateliê de desejos engavetados.


Comprei feijão para a janta, limpei a casa, li histórias, lavei roupas, abri espaço para estar presente para uma criança de 4 anos. Também experimentei fazer fotografias, colagens, experimentos têxteis, transferi Fotos para telas, usei acrílica e fiz vídeos. Partilhei com uma amiga, Paula Monterrey, gestora do espaço independente campineiro Torta Cultural (2016-2021) o desengavetamento dos projetos. Recebi um convite. Com algumas dezenas de reais produzi um conjunto de oito obras que se consolidou na mostra virtual Solo da maternagem solo. Dela levei inúmeros relatos de identificação de outras pessoas cuidadoras de crianças, principalmente mães, e carreguei a obra homônima ao título da exposição como bandeira de uma luta pessoal e coletiva: a revogação da Lei da Alienação Parental. Com Solo da maternagem solo aprendi a lição que depois do fim só há caminho.



 

NOTAS


1 BIOGRAFIA, Processos poéticos, Currículo. Hilda de Paulo. Cia. Excessos, [s.d.]. Disponível em: https://ciaexcessos.com.br/ hilda-de-paulo/biografia/. Acesso em: 5 set. 2024.2 Ficha técnica da equipe educativa: Estagiáries – Asriel

Alves, Beatriz Campolim, Gabriel Feza, Isabelle Masson, Maria Luiza Zitei, Ronaldo Sepúlveda, Thaís Shibuya e Virgínia Rigotti. Mediadores culturais: Gabriel Nardi, Mariana Veloso, Marina Cruz e Michael Manoel. Supervisoras: Maíra Freitas e Simone Peixoto. Programadoras: Laura Andare e Natália Caetano. Assistentes administrativos: Sidmara Carnaúba e Thomas dos Anjos. Sesc Campinas, junho a setembro de 2024.

3 A ÁGUA é uma máquina do tempo. Aline Motta, 2023. Disponível em: https://alinemotta.com/A-agua-e-uma-maquina- do-tempo-Water-is-a-time-machine. Acesso em: 5 set. 2024.4 Ficha técnica: texto curatorial de Luciara Ribeiro; realização Fêmea Fábrica; produção e comunicação de Camilla Torres e Giselle Freitas; montagem de Alexandre Silveira, Camilla Torres, Giselle Freitas, Leo Parreiras, Maíra Freitas e Samara Fagury.

  1. 5  Conta oficial: https://www.instagram.com/femeafabrica/.

  2. 6  ANA Mendieta. Disponível em: https://www.anamendietaartist.

com/. Acesso em: 5 set. 2024.7 BRÍGIDA Baltar. Disponível em: https://brigidabaltar.com/. Acesso em: 5 set. 2024.8 SPEIREN. Rubiane Maia, 2021. Disponível em: https://www. rubianemaia.com/speirein. Acesso em: 5 set. 2024.9 Registro de fala do babalorixá e doutor em Semiótica Sidnei Nogueira na plenária Cultura de Terreiro e Questões de Gêneroe Sexualidade, com Letícia Nascimento e mediação de Maíra Freitas, em 25 de outubro de 2023, no Sesc Pompeia.10 Ficha técnica: curadoria de Luciara Ribeiro; realização Sesc São Caetano; produção de Cássia Rossini e Rafael Moretti; expografia e montagem de Rafael Calixto e Oficina Traquitana; identidade visual de Giuliane Sampaio; arte-educação por Amanda Filgueira.11 ISTO não é uma mulher. Maíra Freitas, 2022. Disponível em: https://www.mairafreitas.art/obras?pgid=kdflk42d-3fe6474c- 3632-43f3-9c5f-3570324c23c4. Acesso em: 5 set. 2024.12 EMERSÃO e fuga do nascimento colonial. MaíraFreitas, 2022. Disponível em: https://www.mairafreitas.art/ obras?pgid=kdflk42d-d0ec307f-d187-425f-80a4-3bb49f03a3b1. Acesso em: 5 set. 2024.13 PAOLA Ribeiro. Disponível em: https://paribeiros.wixsite.com/ paola. Acesso em: 5 set. 2024.14 Conta oficial: https://www.instagram.com/ amandinhafilgueira?igsh=MXh5NjNtNWZqM3Foeg==.





 

Maíra Freitas


Maíra Freitas (1985, Campinas) é artista visual, arte- educadora, pesquisadora e curadora. Sua pesquisa poética parte do desejo de criticizar as relações entre cultura e natureza e desdobra-se em múltiplas linguagens. Expôs nas individuais O Tempo dos Feijões (2023, Fêmea Fábrica, Campinas); Lilás (2022, Sesc São Caetano, curada por Luciara Ribeiro); e Solo da maternagem solo (2021, Torta, Campinas). Esteve na curadoria de Ana Mendieta: Silhueta em fogo | terra abrecaminhos (2023-24, Sesc Pompeia, São Paulo), entre outras. Doutoranda em Artes Visuais (Unicamp), dedica-se ao estudo das artes do vídeo e suas relações com gênero, sexualidade e racialidade.


Comments


bottom of page