Laboratoriar poéticas: conversas-cartografia em torno da terra
- Gabi Leirias

- 30 de jul.
- 8 min de leitura
— Gabriela Leirias
“Ensine; em outras palavras: aprenda. Viva a paisagem com paixão.Retire-a do indistinto, investigue-a, ilumine-a entre nós. Saiba o que significa dentro de nós. Leve para a terra esse claro entendimento. Se a solução lhe parece difícil, talvez até inexequível, não sai gritando por aí, dizendo que está tudo errado [...] Habite o continuum. Atemos novamente as cordas e investiguemos. Seja terroso e pesado.Vomite dia após dia esse vômito comum.” –Édouard Glissant, 1969.

“A luta por outras educações, experiências, linguagens e gramáticas é uma luta pela vida. A educação como um fenômeno radicalizado na condição humana trata diretamente da emergência e do exercício dos seres como construtores dos tempos e das possibilidades.” – Luiz Rufino, 2019.
As mãos estão em forma de concha, dentro um punhado de terra. Terra fresca, úmida, granulosa, com infinidades de formas de vida, algumas por brotar. Compartilho essa terra e a passo para as mãos da pessoa ao lado. Para todos, a pergunta é: qual é a sua relação com a terra?
Esse simples gesto e esse contato com a matéria, têm um efeito imediato no estado das pessoas. Algumas fecham os olhos, outras sorriem, algumas se melancolizam e se conectam com distintos tempos: Vêm as memórias do quintal da avó, da tia, da infância... de uma terra que cuida e pela qual é responsável; a sensação de débito por descuidar dessa terra; a falta de terra ou de quintal e de conexão com as plantas, com o sol, com os animais. Remete a projetos em que trabalha ou que deseja trabalhar.
A sonhos, medos, utopias...Abrir o corpo para sentir a terra, seu peso, seu cheiro, seu aspecto, mobiliza desejos de ações, emoções, memórias. A conexão com um microcosmo em suas mãos, um micro que gera mundos. As reações são múltiplas: respostas objetivas, breve auto apresentação, silêncios, reflexões teóricas ou até um choro. É um convite para abrir um campo comum de diálogo entre as pessoas. Experimentei esse disparador em alguns contextos e o que vivenciamos coletivamente, foi uma experiência de conexão de cada um com seu próprio corpo, história, repertório, mas também com o grupo. Mesmo na diversidade, nos sustentamos e fomos sustentados por um solo comum. E nos abrimos para trocar reflexões teóricas e práticas, experiências, experimentos, percepções.
Por vezes, os disparadores são outros, como uma relação oracular com os materiais disponíveis. Tenho uma série de imagens impressas de trabalhos de arte e ativismo reunidas desde 2014 nos Laboratórios Jardinalidades (1) que inicio junto com Faetuza Tezelli. As pessoas podem escolher tais imagens em busca dessa resposta, ou deixar-se ser escolhida por elas.
Há materiais diversos que se somam a cada encontro, como raízes, sementes, cogumelos, porções de terra, ninhos, cascas, livros... elementos que variam a depender do tema do laboratório e do lugar onde será realizado. Compõem uma mesa de trabalho ou um tipo curioso de um altar, que será totalmente manipulado, subvertido sem cerimônia. Disponibilizo canetas e papéis para que, ao longo da conversa-cartografia que se tece, as pessoas possam interagir e somar numa constelação de palavras.
Essas práticas ecoam o que bell hooks (muita inspirada em Paulo Freire)chama de conversação: um modo de romper com a ideia de que adquirir conhecimento é particular, individualista e competitivo, para assim nutrir o diálogo, a troca de compreensões e sentidos. Um empenho por construir um espaço ético de escuta ativa e construção conjunta do saber desenvolvendo uma visão de comunidade. Segundo hooks, a conversa genuína é compartilhamento de poder e conhecimento; é uma iniciativa de cooperação, não só abre espaço para todas as vozes como também pressupõe que todas as vozes podem ser ouvidas (hooks, 2020).
Além de ser um espaço dialógico de encontro, de compartilhamento de pesquisas e metodologias, de criação e reflexão coletiva, tenho experimentado convidar artistas, para assim, mergulharmos em sua poética. Com um caráter nômade, convidar um artista que vive na cidade que visito tem um duplo intento: conectar com sua poética e com o lugar em que vive. Assim, as discussões propostas sobre arte e território são articuladas e situadas para cada contexto por meio dessa colaboração.
Realizei laboratórios na cidade de São Paulo com Teresa Maria Siewerdt, Laura Gorski e Renata Cruz, Licida Vidal, Susana Dias, Lis Haddad, Jera Guarani, Janaina Machado. Mais recentemente, no Condô Cultural, com Cleiri Cardoso, (se)cura humana, Géssica Arjona, Diana Barquero. E em itinerâncias em Campinas,com Mariana Vilela; em Ubatuba, com Licida Vidal, em São José dos Campos, com Célia Barros. E em algumas cidades do México: Oaxaca, San Pancho e Cidade do México, com Alessandro Zamora e Paola De Anda. Esse percurso abrange cerca de dez anos de laboratórios no entrelaçamento entre prática de pesquisa, educação e curadoria. Já aconteceram em espaços públicos, abertos à participação livre e em distintos espaços de arte e cultura.

Investigamos o território, seus usos, suas relações e seus afetos a partir de poéticas artísticas, pensando o presente, questionando e fabulando futuros. Nesse entremeado de práticas como pesquisadora etc., curadora etc., artista etc., articulo noções cartográficas de investigação em artes, experimentando diferentes formatos de laboratórios, bem como seminários, encontros e imersões. Como a imersão realizada em 2023 na aldeia Kalipety, em Parelheiros, zona sul de São Paulo, junto ao grupo do laboratório de longa duração com Teresa Maria Siewerdt no Centro Cultural São Paulo. Com a coordenação das lideranças Guarani Mbya (2) da aldeia vivenciamos o entrelaçamento radical entre as dimensões da vida e do vivo: cotidiano, arte, ancestralidade, temporalidades, ritos, amparados pelo Nhande Rekó, modo de vida guarani (3).
No Lab Poéticas da Terra em Ubatuba, a artista anfitriã foi Licida Vidal. Trabalhamos com as terras e as águas em sua interação que pode se expressar na cerâmica, nas minúcias do fazer e da poética de Licida. Pudemos nos dar conta da quantidade de ceramistas e de toda uma rede de conexões e trabalhos entre as participantes. Esse espaço de encontro se mostrou precioso: muitas pessoas não se viam desde o início da pandemia de covid19. Estávamos em 2023, mas o impacto da pandemia e do governo Bolsonaro seguia presente no corpo e na necessidade de partilhar a vida.
O formato presencial mostrou-se urgente: a necessidade de mobilizarmos coletivamente o conhecimento e de expandir a escuta. Estar em roda, onde todos podem se ver, se tocar, manusear as imagens e os materiais que os afetam, se inscrever em palavras, revela mais aberturas doque fechamentos diante de tantas incertezas. Essa dinâmica aberta tem um efeito de acolhimento, identificação e pertencimento. Mesmo na diferença, possibilita a criação de um lugar seguro e, quem sabe, de transformação. Dali pode surgir algo prático, gestual e matérico, muitas vezes o que emerge é uma trama de palavras-conceito que os participantes vão construindo coletivamente na conversa-cartografia. Por meio dessas palavras, vamos tecendo e ampliando entendimentos.

Cartografamos ideias, conceitos, formas de interação com a terra por meio de plantios, de lida com sementes e de pequenos ritos. Como também, tecemos aproximações com poéticas artísticas, ativistas e ancestrais, tecendo experiências que são ao mesmo tempo experimentais e experienciadas. Como propõe Antonio Lafuente, ao refletir sobre a colagem como prática do comum, cada gesto, cada voz e cada contribuição se entrelaçam como fragmentos que, ao serem justapostos, compõem uma tessitura provisória e múltipla. A colagem além de dispositivo estético, é metodologia de trabalho coletivo para pensar a curadoria como um laboratório pró comum e amplia as possibilidades de ações comunitárias. O mapeamento e a mediação são também modos de colagem, de fazer curadoria e produzir reflexões coletivas:
" Uma colagem expressa o reconhecimento de que não podemos fazer isso sozinhos, que nem tudo se encaixa em um único olhar e que outros pontos de vista são essenciais pelo simples fato de serem expressáveis. Na prática, em uma colagem, não apenas as contribuições argumentadas são válidas, mas também aquelas nascidas do pensamento associativo ou poético. [...] Em uma colagem, os mundosda experimentação e da experiência, bem como os modos racionais e associativos, se misturam. [...] Uma colagemé sempre uma aposta pelo comum” (4) (Lafuente, 2023 p. 3).



Em alguma medida, é colocar em prática a ideia de “Ficar com o problema” que propõe Donna Haraway. Sustentamos coletivamente incertezas e incômodos, mas também compartilhamos experiências exitosas, tentativas, cismas, insistências e não saberes coletivamente. Experimentamos a premissa de que todos os participantes são artistas, educadores e curadores. Nossos exercícios resvalam nessas práticas e, diante da constelação de conceitos e de trabalhos de arte, possibilita diversas entradas e saídas
para a conversa-cartografia. Os conceitos são operacionais, instrumentais, chamados a vivências, conceitos vivos para serem experimentados no corpo. Estão dispostos lado a lado, sem hierarquizar conhecimentos e saberes, trabalhos artísticos, ações na terra...
O que propõe a escuta da terra como pedagogia, ou como professora? Nós nos conectamos com as matérias e os materiais, as relações multiespécies e as dimensões do território: a dimensão política, os usos e apropriações simbólicas e concretas; histórias, memórias e observação da lógica extrativista em relação à terra e aos corpos humanos e não humanos. O histórico colonial como fulcro a ser problematizado, ao mesmo tempo que são atualizadas as antigas e novas formas de violência. A abordagem pretende ser descolonial, decolonial, contracolonial como método, abordagem e campo teórico. Entendendo, com Luiz Rufino, que a descolonização deve emergir não somente como um mero conceito, mas também como uma prática permanente
de transformação social na vida comum, uma ação rebelde, inconformada, em suma, um ato revolucionário. Por mais contundente que venha a ser o processo de libertação, é também um ato de ternura, amor e responsabilidade com a vida (Rufino, 2019).
Essa perspectiva nos inspira a pensar o território e os laboratórios como lugares de invenção compartilhada, de abertura ao imprevisível, de convívio e aprendizado com a diferença. Nos laboratórios Poéticas da Terra, nos aproximamos de uma rede de práticas coletivas que buscam estados de descoberta e de invenção, entendendo que as possibilidades de práticas artísticas e pedagógicas podem ser lugares de acontecimento, conexão e reencantamento do mundo.

REFERÊNCIAS:
HOOKS, bell. Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática. São Paulo: Elefante, 2020.
LAFUENTE, Antonio. ¡Todos curadores! Ensamblajes canónicos y collage comunes. 2023. Disponível em:
https://www.academia.edu/121480075/_Todos_curadores_Ensamblajes_can%C3%B3nicos_y_collage_ comunes. Acesso em: 16 jun. 2025.
RUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2019.
Notas
Para saber mai, acesse: https://www.instagram.com/jardinalidades/.
Kerexu Lau, Jaxuka Aline, Karai Tiago, Jera Guarani, Vera Pires, Kerexu Mirim, Vera Alcides, Kerexu Martim.
No Documentário poético Projeto Poéticas e possíveis sobre a terra e o território (2023) um pouco do projeto e da imersão: https://youtu.be/L1lD5Oy-A3c?si=eMc-GJThTXf40fGE .
Do original: “Un collage expresa el reconocimiento de que solos no podemos, de que todo no cabe en una sola mirada, y que los otros puntos de vista son imprescindibles por el mero hecho de ser expresables. En la práctica, en el collage valen las aportaciones argumentadas, pero también las que nacen del pensamiento asociativoo poético. En un collage se entremezclan los mundos de la experimentación y de la experiencia, como también los modos racionales y asociativos. Un collage siempre es una apuesta por lo común” (tradução nossa).
Gabriela Leirias
Curadora, pesquisadora e educadora. Doutoranda em Artes Visuais pela UNICAMP, mestre em Artes pela ECA/USP, especialista em História da Arte pela EMBAP/ PR e graduada em Geografia pela USP. Atua com arte contemporânea em diálogo com territórios, cartografias alternativas, modos de cultivos e relações com a terra e os impactos das emergências climáticas. Desenvolve projetos colaborativos e laboratórios que cruzam práticas artísticas e pedagógicas. Desde 2014 coordena a Plataforma Jardinalidades de arte contemporânea, atualmente realiza o projeto Poéticas de las (T)tierras - Red Sur Brasil México, premiado pelo edital FUNARTE Retomada, propondo intercâmbios entre artistas e gestoras culturais do Brasil e do México. Membro da Rede Latino-Americana de Divulgação Científica e Mudanças Climáticas.





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