— Elidayana Alexandrino
O que acontece quando conversamos?Conversar é uma forma de chegar perto, entrar em contato e conhecer pessoas, ouvir histórias e narrar também. Em uma conversa, costumamos perguntar, e o que é interessante na pergunta é que ela não nasce apenas da mente, mas uma boa pergunta nasce da experiência, ela surge no corpo...O que é um corpo? Como os corpos aparecem na história das imagens?Quais corpos são apreciáveis? Como a arte, a ciência e as religiões criaram as ideias sobre os corpos?
São muitas perguntas, e não há como as responder neste texto.
Então vou contar de onde vêm essas pergun- tas: elas fazem parte da pesquisa “Narrativas que se encontram”, que iniciei em 2015, e estão no Instagram, junto a um grupo maior de perguntas, frases e inquietações sobre o mundo das imagens e da arte, a política, a sociedade e o imaginário.
As imagens estão presentes na rotina da maioria das pessoas, mas geralmente não paramos para nos perguntar como nascem as imagens, de onde elas vêm, para onde vão, o que querem. Você lembra como as imagens entraram em sua vida? Recorda como era a época em que a imagem era no papel? Já nasceu na era da imagem digital?
Quando criança, minha brincadeira preferida era olhar imagens e desafiar minhas irmãs a olharem também. Tínhamos vários cartões-postais e calendários com reproduções de obras de arte, além dos livros didáticos. Cresci fascinada pelas imagens. Na adolescência, colecionava recortes de jornais e revistas com matérias sobre arte e cultura, e a curiosidade e o encantamento me levaram para o curso de Artes Plásticas, porque meu desejo era estudar história da arte e trabalhar em museus. Segui o sonho, e hoje o meu museu é o mundo.
Falar sobre minha relação com as imagens é falar sobre minha relação com a vida, e a pesquisa “Narrativas que se encontram” vem dessa relação íntima com as imagens. Mas, afinal, o que é essa pesquisa? É difícil responder a essa pergunta porque a pesquisa ainda está em curso. Talvez eu possa responder o que ela não é... Narrativas que se encontram são imagens das mais variadas expressões artísticas aproximadas por meio da minha memória. Elas apresentam semelhanças formais ou algum elemento que as conectam, separadas no tempo e no espaço, por culturas e dinâmicas sociais. Esses encontros rompem com a estrutura linear da história da arte ocidental e retiram-na do plano racional e lógico, portanto apresento minha forma de pensar e sentir as imagens.
No início chamava de acaso as relações, enten- dia o processo como parte do meu trabalho como educadora, devido à minha experiência com as visitas educativas em exposições de arte, mas depois percebi a frequência desses acon- tecimentos e me trouxe o espanto, a surpresa, a novidade, a alegria, o confronto, o descon- forto, a reflexão, o questionamento, a dúvida, a emoção, muitos sentimentos e sensações.
Percebi que as imagens não podiam ficar apenas no intangível da minha mente, então comecei a compartilhá-las no Facebook para que pudessem ser vistas em conjunto, e assim começou um processo de curadoria inusitada.
Posteriormente, fui para o Instagram e, depois de muito pensar, criei o Laboratório de Escuta de Imagens, de que falarei mais adiante.
A pergunta que me movia no início da pesquisa era:
“Por que certas imagens permanecem?”. Depois passei a perguntar: “O que as imagens querem de mim?”. E hoje minha principal pergunta é: “O que podemos aprender com as imagens?”.
A partir de 2020, comecei a questionar nossa relação com as imagens no ciberespaço. Atualmente, a página no Instagram funciona como um espaço de mediação, em que compartilho mais textos para que possamos refletir sobre como nosso imaginário é formado e sobre as relações, usos e funções das imagens no cotidiano.
Essas “coincidências significativas” com as ima- gens me aproximaram cada vez mais dos estudos sobre memória, porque memória é identidade, é construção do ser; nossas memórias definem nossas ações, nossos caminhos e constroem nossa humanidade, isto é, existimos porque temos uma memória de quem somos, afinal um corpo sem memória não é um corpo consciente.
Nós somos a continuidade visual daqueles que vieram antes, nós somos imagens ancestrais, a encruzilhada dos tempos visíveis e invisíveis do ser...
A MEMÓRIA É A NOSSA TECNOLOGIA ANCESTRAL
› Elidayana Alexandrino,Autorretrato, fotografia digital, 2019; fragmentode escultura de jaspe amarelo, rosto de uma rainha egípcia,1353 AEC-1336 AEC, Novo Reino, Período de Amarna, 18a dinastia, reinado de Akhenaton, Kemet (antigo Egito),The Met – Museu Metropolitano de Arte, Nova York, Estados Unidos.
Se antes perguntava sobre a permanência das imagens, ou seja, a repetição de padrões ao longo da história da humanidade, passei a perguntar o que as imagens estavam desejando, o que queriam de mim. A resposta veio ao deparar com a imagem de um fragmento de uma escultura egípcia, e, como em um espelho, vi meu rosto. Até 2019 não havia me incluído como imagem dentro da pesquisa. Ao fazer isso, percebi minha incompletude; assim como aquela escultura, nossas memórias foram fragmentadas pelo processo de colonização e escravidão, mas não destruídas.
› Cabeça do faraó Tutankamon emergindoda flor de lótus, estatueta de madeira encontrada na entrada da tumba, Vale dos Reis,
18a dinastia, Kemet (antigo Egito).
Foto: Museu do Cairo.Retrato 34, eu com 8 anos, 1995, caderneta escolar.
Foto: Acervo pessoal.
› Busto da rainha Nefertiti, escultura atribuída a Tutmés, 18a dinastia, Kemet (antigo Egito), 1345 AEC. Foto: Neues Museum, Berlim, Alemanha. Fotografia, eu com 17 anos, 2004.
Foto: Acervo pessoal.
› Fotografia 3×4 da minha irmã Maria Alexandrino.Foto: Acervo pessoal. Aquarela de José Tapiró y Baró, A noiva, 1900.
Foto: Museu de Arte e História de Reus, Espanha.
A pergunta que me movia no início da pesquisa era: “Por que certas imagens permanecem?”. Depois passei a perguntar: “O que as imagens querem de mim?”. E hoje minha principal pergunta é: “O que podemos aprender com as imagens?”.
De forma intuitiva, fui incluindo as fotos de familiares, reconhecendo a minha ascendência africana por meio das imagens. Elas se revelaram como parentes distantes, por isso agora entendo esse conjunto como um grande álbum de família, em um fluxo circular de vida.
Para artistas negros que buscam sua ancestralidade para afirmar a identidade e resgatar memórias apagadas, determinadas imagens, ou a falta delas, trazem reflexões e questionamentos sobre políticas da memória, ou seja, quem pode ser esquecido numa sociedade forjada pelas injustiças, pelos traumas raciais e pelas opressões diárias?
Artistas da diáspora africana trabalham com a memória que emerge do sentir e de toda expertise da experiência do viver, a norte-americana Lorraine O’Grady (1934), na instalação fotográfica Miscegenated Family Album1, de 1994, criou dípticos com fotos de sua família, aproximando fotografias de sua irmã mais velha, Devonia Evangeline, com os registros da rainha Nefertiti e outros membros da 18a dinastia, conectan- do assim pelas imagens narrativas distantes de Kemet (antigo Egito) com a sua história. Ela conectou tempo e espaço pelas semelhanças dos rostos, dos gestos e das poses.
› Fotografia da minha mãeMaria Nely amamentandomeu irmão Willian Alexandrino, 1995, e detalhe de pintura de José Cruz- Herrera. L’heureuse famille, s.d., coleção particular.
A obra Miscegenated Family Album surge do luto, após a morte de Devonia. Apesar de sua subjetividade e narrativa pessoal, a artista possibilita que pessoas afro-diaspóricas se reconheçam numa história que antecede as invasões e os sequestros que resultaram no grande trauma da colonização, que é a fragmentação de famílias negras. Sua sensibilidade ao afirmar a africanidade dos faraós é ousada e enfrenta o racismo de forma a questionar a própria estrutura da história da arte hegemônica.
Se Lorraine O’Grady usa imagens da rainha Nefertiti e do faraó Akhenaton para se recuperar da perda da irmã, eu aproximo o “Brasil do Egito” como forma de recuperar uma memória soterrada. Todo esse processo de reconhecimento me apresentou outras realidades imagéticas.
O desenraizamento das culturas africanas e afro-indígenas nos distancia de quem somos, mas, ao tomar consciência das opressões e das nossas imagens ancestrais, conseguimos nos libertar das imagens que manipulam a nossa existência, A psiquiatra e psicanalista Neusa Santos Souza (1948-2008) afirma que nos tornarmos negros é “tarefa eminentemente política”:
"Ser negro é, além disso, tomar consciência do processo ideológico que, através de um discurso mítico acerca de si, engendra uma estrutura de desconhecimento que o aprisiona numa imagem alienada, na qual se reconhece. Ser negro é tomar posse dessa consciência e criar uma nova consciência que reassegure o respeito às diferenças e que reafirme uma dignidade alheia a qualquer nível de exploração. Assim, ser negro não é uma condição dada, a priori. É um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro." — SOUZA, Neusa Santos, 2021, p. 115)2
Esse encontro de narrativas visuais se expandiu para as palavras, que atualmente atuam como extensão do meu corpo. Passei a usar a minha voz como imagens de mim.
Para mudar a cultura precisamos mexer nas imagens
“As letras são mais fáceis de juntar do que as imagens. As figuras são mais difíceis para ligar. As letras a gente sabe logo, as figuras nunca se sabe totalmente.”3 — Fernando Diniz
Penso que antes de tudo precisamos aprender a enfrentar as imagens e saber mexer com elas, porque elas sabem mexer conosco. E o que significa mexer nas imagens?
Mexer nas imagens significa mexer no além tempo/espaço. Mexer nas imagens não é apenas manipular, recortar, colar, mexer nas imagens, é colocá-las em diálogo, em uma ciranda, uma roda. Mexer nas imagens é observá-las em conjunto para ver como reagem.
E como as imagens digitais ficavam ali nas redes sociais, criei em 2019 o Laboratório de Escuta de Imagens, uma ação experimental com as imagens da pesquisa “Narrativas que se encontram”, que tem o objetivo de proporcionar uma vivência, construir outros modos de olhar, perceber, sentir, tocar e ser tocado pelas imagens, e assim estabelecer relações, diálogos e partilhas com a intenção de criar curadorias coletivas por meio de um exercício relacional.
Ao trabalhar com as imagens em conjunto impressas em papel Fotográfico, no tamanho 10×15, elas ganham uma estética de álbum de família ou mesmo cartas oraculares. Nas redes
sociais, as imagens estão acompanhadas de legendas, com o nome dos autores, as técnicas e o ano, mas no laboratório não, porque as pessoas são convidadas a conversar com as imagens, a escutar suas memórias, o que permite uma relação de intimidade, subjetividade, imaginação e entrega ao não saber, já que a única informação fornecida é o diálogo estabelecido a partir do encontro com as imagens.
Nessa experiência, o repertório pessoal é fundamental, ou seja, a investigação possibilita uma dinâmica individual e depois coletiva, quando em grupos ou duplas criam curadorias com critérios estabelecidos na dinâmica relacional. Nesse processo, sou uma propositora que está também no lugar de escuta.
No Laboratório de Escuta de Imagens, estímulo as pessoas a uma aproximação com as imagens, mas não existe uma forma, e sim um processo sensível e subjetivo. Busco envolver as pessoas com as imagens, em um exercício de proposição que envereda pelo viés da educação. Trago como referência Paulo Freire, que nos ensina que ensinar exige saber escutar:
" A importância do silêncio no espaço da comunicação é fundamental. De um lado, me proporciona que, ao escutar, como sujeito e não como objeto, a fala comunicante de alguém, procure entrar no movimento interno do seu pensamento, virando linguagem; de outro, torna possível a quem fala, realmente comprometido com comunicar e não com fazer puros comunicados, escutar a indagação, a dúvida, a criação de quem escutou. Fora disso vence a comunicação " (FREIRE, Paulo, 2008, p. 117).4
Finalizo esta conversa, que foi um relato curto dos anos de envolvimento com essa pesquisa, compreendendo que ela não acaba, mas se desdobra, inclusive em instalação interativa dentro da exposição Encruzilhadas da Arte Afro-brasileira, fruto do Projeto Afro, com pesquisa e curadoria de Deri Andrade, que esteve no CCBB de São Paulo (2023) e no de Belo Horizonte (2024), mas também em cursos, artigos, textos como este...
› Laboratório de Escuta de Imagens. Mostra Ivone e Nise: um reencontro, 2024. Pinacoteca de Mogi das Cruzes, São Paulo, Brasil. Foto: Acervo pessoal.
Mexer nas imagens significa mexer no além tempo/espaço.
› Elidayana Alexandrino, Narrativas que se encontram, 2023.Obra comissionada para exposição a Encruzilhadas da Arte Afro-Brasileira. Centro Cultural Banco do Brasil, São Paulo, Brasil.Mesa com imagens e vídeos.Foto: Estúdio em Obra/Cortesia Tatu Cult.
Uma boa conversa continua com outras vozes, em outras situações, em outros momentos, e, como educadora que gosta de perguntar, pergunto:
Qual parte do seu corpo é afetada pelas imagens para além do olhar? Onde as imagens o tocam? Você conhece suas imagens ancestrais?
Perguntas são oportunidades para uma emancipação do imaginário e a autonomia do olhar, perguntar é o início do saber.
NOTAS
1 Disponível em: https://lorraineogrady.com/art/ miscegenated-family-album/. Acesso em 15/08/2024.
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.
SILVEIRA, Nise da. Imagens do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2015. p. 51.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz & Terra, 2008.
Elidayana Alexandrino
Elidayana Alexandrino nasceu na Paraíba, vive e trabalha em Suzano/SP. Artista visual, educadora, curadora e pesquisadora independente. É graduada em Artes Plásticas licenciada em Educação Artística (UBC) e utiliza a fotografia e a palavra como forma de expressão. Tem pesquisas que relacionam imagem, memória, cotidiano e também investiga a relação entre corpo, retrato e natureza. Há mais de uma década atua em museus e equipamentos culturais, fazendo visitas, formações, materiais educativos, oficinas e projetos curatoriais.
Comments