— Mariana Vilela
A linha nos ensina que é preciso se demorar em suas práticas: femininas e substancialmente eróticas.
Num tempo outro, mais lento, pois o que a linha pede da gente é lentidão, vagareza. Como se o instante se dilatasse na dança cautelosa dos dedos e materiais e se condensasse no tato, numa fração de eternidade. Os gestos que, muitas vezes, são consi- derados repetitivos e monótonos vão se mostrando plenos de diferença no tempo da criação. O tempo se abre e se alarga, dobra e se contrai, se cruza e se encontra. O tempo todo o tempo dura, perdura, instaura (DERDYK, 2010). Vaza pelos dedos, torce e se contorce, entretece e segue acontecendo.
› Mariana Vilela. Novo-elo, 2022. Foto: Otávio Abdalla.
A prática artesanal de fiar mobiliza meu fazer artístico. A ideia é experimentar a fiação em sua potência ontoepistemológica, ou seja, em sua potência de criar modos de ser e pensar, atribuindo primazia aos processos em vez dos produtos finais, preferindo os fluxos dos materiais em vez das propriedades e dos estados da matéria. Como artista, olho para a técnica ancestral do fiar como possibilidade de criação, e não apenas como uma prática do passado. Aposto, para isso, em uma potência pragmatista do pensamento que percebe e dá a ver e sentir, a potência de um pensamento em ato que se dá nas práticas (LAPOUJADE, 2017). Acredito que dar atenção às práticas é um modo de dar atenção aos corpos mergulhados em relações ativas com os meios (INGOLD, 2015; GREINER, 2008). Sinto como a prática do fiar nos convoca a uma devoção às possibilidades que se engravidam entre linhas, corpos, pesquisa e vida (INGOLD, 2015).
› Mariana Vilela. Novo-elo, 2022. Foto: Otávio Abdalla.
É no entrecruzamento dessas ideias que nascem os fios com os quais se costura um corpo-linha-selvagem. Corpo-linha-selvagem como uma prática, e um conceito, e uma pesquisa, e uma produção artística, e uma conexão, e uma meditação, e um respiro, e uma tática, e um dispositivo e um exercício de produção de mundos, e uma brecha, e uma resistência, e uma força erótica, e um tempo outro/mesmo, e uma força de engajamentos, e uma performance, e uma comunicação entre heterogêneos, e um modo de fiar com uma terra viva, e na busca de viver e morrer bem, e e e e e e...
Esse é um conceito-prática que me parece potente para pensar diante do Antropoceno (HARAWAY, 2016), um tempo presente de destruição sem precedentes, que exige novos modos de ler uma terra/Terra viva e ferida, modos capazes de interrogar e se desviar das apostas que fixaram e desmaterializaram os mundos, tornando-os inertes. Diante do Antropoceno, precisamos aprender a fiar-com.
E aprender a fiar vai se mostrando um apren- der a retomar práticas milenares e femininas e desviar dos movimentos tristes (e muitas vezes violentos) que relegaram esse fazer: aos humanos em oposição aos não humanos, ao lugar da prática em oposição ao pensamento, ao lugar do artesanato em oposição à arte, ao lugar do saber cotidiano em oposição às ciências.
› Mariana Vilela. Novo-elo, 2022. Foto: Otávio Abdalla.
Diante desse cenário de catástrofes o corpo-linha-selvagem, torna-se um campo intenso de forças e de perguntas: Que corpo em performance é possível diante do Antropoceno? Como sair da lógica humana para realizar uma prática artística que tem o corpo como meio e mídia de expressão e abrir-se para outros engajamentos possíveis? O que pode a prática da fiação ensinar à performer? O que pode acontecer quando a performer se alia ao algodão, às ovelhas e às ferramentas para exercitar um corpo que performa?
Na tentativa de responder às questões acima, surgiu “novo-elo”, uma obra artística no qual se faz a performance para ativar a instalação. Um tapete artesanal de linha cru 2,50 × 2,10 m, sobre ele uma cadeira pequena (dessas de criança), pedaços de tecidos retangulares branco em que podemos ver a fibra esguedelhada; um par de escovas de cabelos, outra de escovar animais e as pás de cardas, juntas, é possível reconhecer as semelhanças entre elas. Espalhadas sobre o tapete, as fibras de lã, de algodão, de paina, pelos de cachorro e cabelos de várias mulheres recolhidos desde 2021. Instalada em duas paredes perpendiculares, uma prateleira de madeira onde estão dispostos vários potes grandes de vidro contendo o material coletado: as fibras, os pelos e os cabelos. Os materiais estão dispostos como se alguém tivesse levantado no instante anterior para ir ali e logo voltará. Uma cena-instalação estranha e ao mesmo tempo familiar. Na instalação, a presença do humano se faz pela ausência de seu corpo e materiais em uso. As coisas ali arranjadas carregam em si a força (invisível) do fiar. A instalação é interativa, qualquer pessoa que visite a exposição pode tocar nos materiais e (se souber) fiar.
› Mariana Vilela. Novo-elo, 2022. Foto: Otávio Abdalla.
Minha aposta é a ressensibilização dos corpos a partir da fiação, e, com isso, abre-se ao entendimento que fiar é naturalmente um fiar-com. E o fiar-com é envolver-se nos fios da metamorfose, em que nos posicionamos aquém das oposições e honramos a possibilidade de que todo fio seja percebido e experimentado como propenso aos encontros. As linhas ensinam que viver é sempre um viver-com-em-companhia em um constante emaranhamento. Novo-elo propõe o humano sendo materiais entre materiais, ferramentas entre ferramentas. Lança o convite para engajamentos e misturas entre não humanos, mais-que-humanos e humanos.
BIBLIOGRAFIA
DERDYK, Edith. Linha de costura. 2. ed. Belo Horizonte: C/Arte, 2010.
GREINER, Christine. O corpo: pistas para estudos indisciplinares. 3. ed., São Paulo: Annablume, 2008.
HARAWAY, Donna. Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes. Tradução: Susana Dias, Mara Verônica e Ana Godoy. ClimaCom – Vulnerabilidade [online], Campinas, ano 3, n. 5, 2016. Disponível em: http:// climacom.mudancasclimaticas.net.br/antropoce- no-capitaloceno-plantationoceno-chthuluceno-fazendo-parentes. Acesso em: 28 dez. 2023.
INGOLD, Tim. Estar vivo: ensaio sobre movimento, conhecimento e descrição. Tradução Fábio Creder. Petrópolis: Vozes, 2015.
LAPOUJADE, David. As existências mínimas. São Paulo: N-1 edições, 2017a.
Mariana Vilela
Natural de Belo Horizonte, Minas Gerais, Mariana vive há quase 20 anos noestado de São Paulo. Já passou pela região do ABC paulista e por Campinas e atualmente reside em Ubatuba. Mestre em Divulgação Científica e Cultural pelo Labjor/Unicamp, coma dissertação: Corpo-linha- selvagem, um modo de fiar comuma terra viva, seu interesse está no que há entre-corpos:relações. Tem a linha como objeto simbólico e conceitual e, nessa perspectiva, tece conexões entre arte têxtil e artecontemporânea. Expressa-se através de performances,foto e vídeoperformances, instalações, objetos e escrita. Atualmente participa da Gomagrupa, uma coletiva de artistasmulheres, do grupo de pesquisa multiTÃO: prolifer-artes sub-vertendo ciências educações e comunicações (CNPq-Labjor-Unicamp) e faz parte da Rede Latino-americana de Divulgação Científica Mudanças Climáticas e Recursos hídricos do INCT.
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