— Gabriela Serfaty
O livro O que não pode ser esqueci- do quando Juquery fecha as portas?, de Cibele Lucena e Flavia Mielnik, abre a possibilidade de novas perspectivas e reflexões sobre a história do Complexo Hospitalar do Juquery. A obra se configura como um arquivo vivo e poético que começa, já em seu título, com uma pergunta instigante que convida o leitor a embarcar em um exercício de confabulação. Não se propõe a abarcar toda a complexidade dos anos do Complexo nem a seguir uma linha cronológica rígida dos fatos. Em vez disso, foca os testemunhos, apresentados em fragmentos cheios de tropeços e contradições.
A obra registra, com uma escuta atenta, os trechos e vestígios de um tempo árduo, repleto de histórias de sofrimento, dor e privação. Mas, ao mesmo tempo, traz relatos de encontros transformadores que ajudaram a salvar muitos dos traumas vividos ao longo dos anos dentro da instituição manicomial. Esses encontros se tornam pequenos “salva-vidas” que moldam a atmosfera escolhida pelas autoras, que, acima de tudo, apresentam sua narrativa por meio de uma linguagem artística, permeada por diversas formas de expressão. Trata-se, portanto, de um livro de artista.
A narrativa é percorrida por gestos mínimos, especialmente evidentes nas falas de Neusa, costureira por anos no Complexo Hospitalar de Juquery. A sutileza de seu cuidado se revelava, por exemplo, na preocupação com a forma como os pacientes se vestiam: ela ajustava cuidadosamente um botão fora do lugar, endireitava a prega de uma roupa. Seu olhar atento impedia que os próprios pacientes se tornassem meros trapos. Um gesto aparentemente pequeno, mas grandioso, pois, ao não perder de vista a delicadeza das diferenças, resiste à insistente tentativa manicomial de ofuscar e homogeneizar cada sujeito.
Dos gestos de Neusa emergia uma particularidade extraordinária. Assim como outros relatos, eles funcio- nam como vaga-lumes, iluminando a escuridão (1). Na escuridão, o vaga-lume só pode ser visto à noite, quando as luzes se apagam. Esses pequenos seres são capazes de iluminar vidas e dar a elas algum sentido, para além do apagamento a que comumente são destinados a partir de uma longa internação psi- quiátrica. Cintilam existências pois trabalham no breu, e é diante desse breu que sua ínfima luz pode criar relações de afeto, resistindo a situa- ções obscuras, quase invisíveis, que beiram o desaparecimento.
A narrativa desse livro segue o caminho das pequenas luzes de resistência, em que os vaga-lumes simbolizam a força resiliente de pacientes e funcionários. Além de Neusa, com sua vitrola na sala de costura, os corredores do Juquery revelavam outros personagens também capazes de lampejar na escuridão. A paciente Cecília colhia flores todos os dias e as oferecia a alguém, enquanto Patrícia, Marcelo, Paula, Veridiana e Sueli — entre outros funcionários — também realizavam práticas capazes de instaurar atos e momentos de escuta, acolhi- mento e cuidado.
Entre eles, havia ainda o Gato Tchuco, que foi de Nelson, e antes de William e Pedro. O gato vagava pelos corre- dores, cuidando à sua maneira. Já o triciclo, que Marco Antônio e Joaquim usavam para compartilhar momentos de intimidade e encontro, se torna também rara abertura em um espaço de confinamento. Para muitos, a vida naquele hospício-casa sem chaves nas portas era peculiarmente arrastada. Brechas eram raras, embora existissem, percebidas nos raros encontros que as autoras tão bem registraram.
Um dos elementos importantes que aparecem na obra é a bolsa. Sim, uma simples bolsa, que em tempos de maior fechamento era um objeto impossível de se ver dentro do Juquery. À medida que as conquistas por abertura dos manicômios avançavam, a bolsa começou a fazer parte da vida dos pacientes e moradores. Esse objeto, um verdadeiro vaga-lume em forma material, trouxe a primeira noção de singularidade e intimidade. Uma bolsa onde se guardavam pertences pessoais: batom, cigarro, caneta, escova de dentes, cadernos. Nela, os pacientes carregavam objetos adquiridos ou coletados durante a vida no Juquery. A bolsa também guardava memórias, afetos e segredos.
Ursula K. Le Guin (1928-2018) foi uma autora norte-americana de ficção científica, conhecida por livros e ensaios inovadores. Em seu ensaio filosófico A Teoria da Bolsa de Ficção, Le Guin introduz uma ideia fascinante sobre a importância dos recipientes na evolução humana. Ela argumenta que “o primei- ro aparato cultural foi provavelmente um recipiente para guardar os produtos coletados, ou algum tipo de carrega- dor em forma de rede” (2), permitindo que nossos ancestrais armazenassem alimentos como sementes, frutas e grãos, garantindo assim a sobrevivência por mais alguns dias.
Le Guin desafia a narrativa tradicional, focada nas grandes caçadas de mamutes e nos triunfos bélicos, e volta seu olhar e sua escuta para histórias silenciadas que foram cruciais para nossa sobrevivência. Em vez de associar a evolução humana à invenção de armas como flechas, espadas ou lanças, ela propõe que o verdadeiro avanço ocorreu com a criação de recipientes que permitiam o armazenamento de alimentos coletados. Esses objetos, segundo Le Guin, desempenharam um papel fundamental em nossa capacidade de viver nas cavernas. Não foi um objeto duro e pontudo que nos garan- tiu a subsistência, mas a criação de um recipiente que permitia coletar e carregar mais mantimentos.
Le Guin sugere que, ao carregar frutas, raízes, brotos e nozes, nossos ancestrais conseguiram ir além do que as mãos poderiam segurar, especialmente quando estas estavam ocupadas com bebês. Esses recipientes permitiram que se trouxessem mais recursos para casa e se garantisse a nutrição. “A pessoa média pré-histórica vivia bem com sua colheita; não era a caça que a mantinha viva”3, observa Le Guin. Esses recipientes não apenas protegiam os alimentos e nos resguardavam em dias de chuva, mas também promoviam o compartilhamento entre a comunidade — um ato essencial para a vida em grupo. Levar alimentos para casa e dividi-los com outros era, para Le Guin, uma história não contada: “a estória da vida” tão apagada, vista como de pouca importância diante das grandes sagas dos ditos heróis.
Ursula K. Le Guin propõe uma maneira diferente de entender nossa cultura. Para ela, foi a bolsa — um recipiente que nos ajudou a armazenar e compartilhar — que nos ensinou o que significa viver em comunidade. Ao contrário da narrativa tradicional, que exalta a cultura baseada na ascensão do mito do herói, aquele que sozinho derrotou o mamute, Úrsula nos convida a olhar para histórias coletivas, de colheita e do cotidiano, sem grandes feitos heroicos. São essas pequenas histórias que, segundo ela, nos mantiveram vivos e permitiram nossa evolução como espécie.
Após esse arco teórico e histórico, voltamos ao contexto do Complexo Hospitalar de Juquery que permaneceu aberto por mais 122 anos e chegou a ter 16 mil moradores entre 1960 e 1970.
As portas do Juquery começaram a se abrir em meados dos anos 1980, e com isso os pacien- tes passaram a conquistar mais direitos. Sueli conta, por exemplo, que a chegada de Paula foi importante, pois ela mobilizou para que os passeios dos pacientes fossem feitos sem o uniforme da instituição, permitindo que eles circulassem pela cidade com suas próprias roupas. O uso do uniforme, como aponta Sueli, reforçava o estigma da institucionalização. Essas conquistas também contribuíram para que os pacientes obtivessem o direito de ter um armário e uma bolsa — avanços que surgiram com o início do movimento antimanicomial. A entrada de pertences pessoais no hospital foi um sinal de abertura, uma verdadeira vitória. Dentro de um regime fechado, possuir algo que é exclusivamente seu representava uma ruptura com a ideia de que “tudo é de todos”, o que, na prática, significava que “nada é de ninguém”. Com uma bolsa, o paciente começava a experimentar uma noção de subjetividade, uma conexão com sua própria identidade e individualidade.
Embora a subjetividade não dependa necessariamente da posse de objetos, naquele con- texto, ter uma bolsa representava um passo importante em direção à singularização, em um ambiente que tendia à homogeneização. A bolsa lembrava o paciente de que ele tinha seu próprio mundo, um espaço onde poderia guardar o que considerava importante para sua existência.
A bolsa passou a abrigar uma parte do mundo pessoal que havia sido perdido, permitindo que objetos fossem guardados — lembranças de parentes, itens encontrados ou recebidos, e objetos de troca. O cigarro, por exemplo, funcionava como uma moeda dentro da ins- tituição, e as trocas revitalizavam relações anteriormente extintas. Um cigarro podia ser trocado por chinelos, óculos, chocolates, uma caneca ou uma escova de dentes. Esses pertences criaram uma forma de diferenciação entre os pacientes, que, antes, eram tratados como iguais em sua despersonalização.
Em algum momento, os pacientes do Juquery começaram a se tornar coletores, quase como uma prática ancestral, conforme sugere Ursula K. Le Guin. Joaquim, por exemplo, guarda- va pequenos papéis de embalagem na sua sacola — até mesmo o papelzinho de fumo que alguém lhe deu. Ele se apropriava de cada pequena coisa. Já Alzira fazia o mesmo com canecas; alguém lhe dava uma, e ela a mantinha sempre dentro da bolsa, não se separava dela por nada.
A bolsa, nesse contexto, se transformou em um personagem, criando suas próprias relações. Neusa conta a história de Alzira, uma das pacientes de Juquery, que não deixava ninguém lavar sua bolsa. Era ela mesma quem cuidava, e a bolsa e Alzira eram inseparáveis. As bolsas eram sempre grandes, capazes de guardar mais e mais coisas.
Paula, uma das funcionárias, compartilha sua percepção sobre essa relação:
“Todas gostavam muito de bolsas e sacolas. Era algo muito comum entre eles. Aonde quer que fossem, carregavam suas bolsas. Era o único pertence verdadeiro que tinham, e isso as distinguia. Eles ficavam extremamente felizes quando ganhavam uma bolsa nova ou quando conseguíamos trocar a que tinham. Eu me pego pensando: o que isso significa, afinal? Acho que nunca seremos capazes de compreender completamente o significado disso. Tudo o que têm cabe dentro de uma bolsa. O que é não ter casa, não ter família, não ter história? Por que isso? O que isso significa? Quem é que conta essa história? Por isso, eu sempre tive muito respeito por eles, e eles também tinham essa preocupação. ‘Você guarda isso pra mim?’ Às vezes, a gente mudava uma bolsa de lugar, tirava de uma cadeira para colocar em outra, porque alguém ia se sentar, e eles logo diziam: ‘Não, pera aí’” (4).
Para concluir esta escrita-falada, retorno às lembranças de Neusa, que tanto me inspiraram nesta confabulação. No fechamento do Juquery, Sueli, incomodada com a forma como os pacientes estavam saindo do hospital, chamou Neusa para costurarem malas para cada um deles. Sueli conta que os pacientes estavam indo embora para casa com sacolas de lixo nas mãos. Diante disso, pensou: “Precisamos chamar a Neusa para fazer uma mala para cada paciente, para que eles possam sair daqui com dignidade, levando os objetos que passaram a fazer parte de suas vidas. Eles precisam partir com suas próprias malas.”. (5)
Não era mais uma simples bolsa, era agora uma mala. Neusa confeccionou uma para cada um. Essas malas foram feitas na sala de costura de Neusa, e esse gesto simbolizou um reconhecimento muito importante: o lugar que esses pacientes passariam a ocupar na sociedade. Não seriam mais vistos como trapos ou números de prontuários, mas como cidadãos com suas próprias histórias, contadas através deles e dos objetos que carregavam.
Sueli e Neusa decidiram, então, fazer para cada paciente um enxoval de partida, como se estivessem dando à luz para o mundo. Essa imagem me remeteu ao nascimento e me peguei pensando: será que eles estavam nascendo de novo? De certo modo, sim. Eles agora podiam escolher suas roupas, seus objetos — tudo o que caberia em suas malas. Deixavam de ser internos de 40, 50 anos, cuja vida, até então, era reduzida a registros médicos. Finalmente, ganhavam uma identidade, marcada pela possibilidade de reconstruir suas estórias. Essas malas representavam mais do que objetos: elas simbolizavam um recomeço, uma nova trajetória que se abria para cada um deles.
Fiquei muito contente em me debruçar sobre esse livro arquivo poético, pois já li diversos livros sobre a reforma manicomial e conheço muitas histórias, mas acho que esse traz algo novo à maneira como revela os testemunhos ali presentes, pois, como eu disse anteriormente, é um livro de artista. Isso se faz presente nas lacunas presentes no livro. A arte tem esse papel importante — ela não precisa preencher as lacunas, mas pode, ao contrário, evidenciá-las, sem a necessidade de substituí-las por algo.
O livro de modo sutil respeita o silêncio sem deixar de revelar os silenciamentos, assim como respeita as lacunas, e isso fica muito aparente sobretudo nas silhuetas dos desenhos, evidenciando o vazio interno visível nas linhas dos pacientes deitados no pátio, sem rosto, sem boca, sem detalhes. Ali eram as pessoas sem nomes — como elas eram, como comiam, o que faziam —, mas o livro opta por deixar um espaço com suas ausências, que nos faz compreender quanto realmente não sabíamos sobre aquelas vidas. Não eram os dez volumes de prontuários, como mencionado no livro, que poderiam nos fazer conhecê-las de verdade. Eram vidas ausentes, em suspensão. Sustentar esses silêncios de uma memória que, embora seja traumática, também carrega feixes de alegria e resistência, isso só é possível através dos “vaga-lumes” extraordinários que passaram por ali.
Os extraordinários vaga-lumes de Juquery é uma adaptação da fala proferida por Gabriela Serfaty na mesa “O que não pode ser esquecido quando o Juquery fecha as portas?”, formada por Cibele Lucena, Flavia Mielnik, Gabriela Serfaty e Neusa do Espírito Santo, no contexto do 5o Seminário Cultura e Saúde, organizado pelo Festival Soy Loco por Ti Juquery, no interior do Complexo Hospitalar do Juquery, em setembro de 2024.
NOTAS
1 Vaga-lumes citados neste texto fazem referência ao livro do George Didi
Huberman: A Sobrevivência dos Vaga-lumes. Traduzido pela editora da UFMG.
2 LE GUIN, K. Úrsula. A teoria da bolsa de ficção. Editora n-1.2021. p. 19.
3 Ibidem, p. 17.
4 Trecho retirado do livro O que não pode ser esquecido quando Juquery
fecha as portas?, de Cibele Lucena e Flavia Mielnik, 2021.
5 Outro trecho retirado do livro acima.
Gabriela Serfaty
Artista, psicoterapeuta/psiquiatra. Mestre pelo Núcleo de Subjetividade da PUC-SP. Pesquisa as relações entre gênero e loucura; em práticas que estejam na fronteira entre a arte e a clínica. Em 2019, realizou a formação de artistas do Parque Lage. Em 2023, foi cofundadora do Ateliê entreaberto, projeto transdisciplinar que desenvolve trabalhos entre arte e campo do cuidado.
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