— Gabriela Leirias
Nesta publicação, com vistas a uma cartografia que se espraia para iniciativas além da capital paulistana, desejamos construir um lugar de visibilidade e fortalecimento de práticas e reflexões potentes nas artes visuais, assim como um lugar de colaboração, de rede e de criação, que se aprofundará ao longo das diferentes edições e nas temáticas propostas.
Longe de ser algo ainda em incubação ou inatividade, experimentamos outras possibilidades do termo latente como algo que ainda não se faz amplamente visível por diversas contingências, de modo que há o desejo de convidar a um esforço coletivo para tornar visíveis projetos, trabalhos, poéticas, existências. O tornar visível envolve também a intencionalidade de investigar, problematizar e comunicar. Ao iniciar a Revista Latente enfocando o trabalho de mulheres, abraçamos a investigação sobre apagamentos, conflitos, acobertamentos pelos saberes e meios hegemônicos, estes que infelizmente ainda persistem na sociedade e no campo das artes. Mas também enfocamos as resistências, as insistências, as táticas e as poéticas que se elaboram nesses processos.
Foi dado, portanto, um passo para cartografar poéticas e práticas desenvolvidas por mulheres na sua diversidade de experiências e experimentos. Não há aqui o interesse em cunhar um caminho de essencialidades ou especular sobre uma estética feminina, mas de frisar especificidades, ao mesmo tempo que multiplicidades, trilhando caminhos para fortalecimentos e visibilidades do aspecto plural e relacional do que pode evocar a palavra mulheres. De modo que as discussões sobre os espaços públicos e privados, o íntimo e o coletivo, as corporalidades, os moralismos sobre gênero historicamente naturalizados, as relações de poder, as violências visíveis e invisíveis, os silenciamentos, seguem como uma tarefa delicada, difícil e ainda necessária.
Neste último mês de março, em que houve grande mobilização nacional e internacional pelo chamado 8M2 – há muito considerada uma data a não ser comemorada, mas, ainda e (talvez) sempre, uma data de reafirmação de direitos e de pautas políticas –, uma expressão ecoou em muitos meios: “Estamos cansadas!”
Cansaço que reverbera nas redes, nas ruas, nas casas, nos trabalhos, nas escolas, na academia… Cansadas de um certo lugar na sociedade, nos discursos, nas ações. E Larissa Isis (p.61) aborda os corpos de mulheres negras que são expostos a violências, explorações, preconceitos, equívocos e evidenciam as perversidades da colonialidade nos hábitos, nos pensamentos, na intimidade. Processos tão eficazes de violência e exclusão que persistem. Cansadas seguimos…
Fica evidente que as mulheres precisam criar um campo de relações para existir nas artes e na vida, desejosas de espaços mais abertos, democráticos e solidários. Pergunta: há de se “lutar” em todas as esferas da vida? Ressalto aqui esta pulsão de fluxo coletivo, a força de não estar só, as poéticas/políticas coletivas e colaborativas. Como elabora a coletiva GOMAGRUPA, o agomamento! (p.79) neologismo para plasmar a liga dos corpos que não oblitera as singularidades.
Helena Vieira, filósofa, atriz e professora, questiona certa concepção “tradicional” de feminismo e se poderíamos dar rumo a outros movimentos que não estejam pautados pela histórica ideação ocidental. Afinal, visto que os caminhos no Sul global têm suas especificidades, poderíamos nos aproximar de um feminismo decolonial? Ou melhor, nossas singularidades Améfrica ladinas (Lélia Gonzales) podem confluir em um feminismo decolonial, que, segundo Françoise Verger, é preciso que seja antipatriarcal, antirracista, anticolonialista? Negações vitais para ser possível pensar em futuros.
Já nos habituamos que nas artes as categorias a serem investigadas precisam ser problematizadas. A verdade é que as artes produzidas por mulheres são políticas. A categoria mulher é política (Elsa Dorlin) pois deseja problematizar este constructo social no qual estamos todes enredades. Evidenciar as imposições e as armadilhas que se relacionam não apenas ao feminino, mas aos constructos dos papéis sociais como um todo.
De historicamente identificadas como da ordem do doméstico e do corpo, elementos fundamentais que foram visibilizados nas pesquisas de muitas artistas mulheres, há de se ressaltar práticas e pensamentos complexos em que atividades de pesquisa, mediação, educação, gestão e produção artística se somam.
Experiências como as destacadas nesta publicação, outras circunscritas ao estado de São Paulo – como as residências Sau_va 3, Silo Arte e Latitude Rural 4, Respiro 5, –, outras que ampliam territórios – como Artistas Latinas 6, Piscina 7, ProjetoAFRO 8 e Curadoria forense 9 – evidenciam contextos, modos de produzir e de pensar arte, sociabilidades e colaboração. É importante citar o protagonismo de mulheres nessas iniciativas, práticas que elaboram possíveis comunidades de atenção e cuidado, como propõe Bella Tozini (p. 39), e redes encabeçadas por mulheres que exercem tais mobilizações e sonham algo realmente democrático, outros modos de organização político-afetiva para um mundo que está em colapso.
Larissa Bombardi, geógrafa e pesquisadora do uso de agrotóxicos (exilada desde 2021, quando se intensificaram as perseguições devido às suas pesquisas no governo Bolsonaro), traz o papel das mulheres em iniciativas diversas que denunciam a exploração violenta e o uso de químicos e pesticidas na terra, gerando um processo que ela vai denominar de Colonialismo químico. Apresenta dados concretos de como as mulheres propõem caminhos, pois são elas que lidam diretamente (somos nós que lidamos) com as violências que reverberam sobre nossos corpos atingidos: as contaminações, os abortos indesejados, as más-formações fetais. Os números dizem que os homens são os mais afetados, mas também indicam que são as mulheres que criam todo um contexto de cuidados para lidar com as consequências 10. As mulheres se organizam reivindicando coerência entre corpo-espaço-ação-pensamento. E como reitera Cristine Takuá sobre as mulheres indígenas: elas são as semeadoras do Teko Porã, o território do bem viver (p.19).
As violências empreendidas nos territórios se assemelham às que ocorrem aos corpos, conforme aprendemos com autores como Malcom Ferdinand e Jota Mombaça, de modo que não há de se negar que certos mundos precisam acabar, os gestados pelo patriarcado e pelo capitalismo exploratório, afinal: é possível capitalismo sem exploração de corpos-territórios?
Silvia Federici e Françoise Verger afirmam que não, as estruturas de exploração, em especial do trabalho não remunerado de mulheres, principalmente mulheres negras, são o que alicerça esse modo de produção.
Vamos imaginar antes o fim do mundo do que o fim do capitalismo? (pergunta de Mark Fisher que tem ecoado em vários meios). O que nos falta para atendermos às urgências do nosso tempo?
Tais discussões podem ser reveladoras de um modus operandi que indissocia o patriarcado e a colonialidade. As violências empreendidas sobre os corpos e os territórios são parte de um mesmo problema que envolve as relações de poder e de dominação. Não é assunto de mulheres! Meu esperançar é que compreendamos que é um assunto de todes.
Ailton Krenak, em uma de suas muitas falas críticas em relação à colonialidade e a mundo que está a caminho do abismo, que leva ao colapso do mundo como o conhecemos 11, comenta que as mudanças precisam partir do lugar. Há de se pensar globalmente e agir localmente. Algo já detectado por Milton Santos desde os anos 1990 ao evidenciar não somente as benesses, mas as perversões dos processos da globalização. Há de se fortalecer o lugar, ele não diz somente sobre localização, é categoria complexa que indica uma escala construída a partir do cotidiano que contempla as materialidades do espaço, mas também seus afetos, relações, fluxos, ritmos e temporalidades, bem como suas especificidades. Lugar, portanto, torna-se uma categoria preciosa para esta publicação, pois a partir dela nos conectamos com uma dimensão existencial da corporalidade e do cotidiano, da cena local, mas também com o regional e o global 12.
Por isso, ressaltamos as atuações locais cujas metodologias e estratégias podem mobilizar diferentes grupos e comunidades e, quem sabe, criar comunidades em rede, de modo a buscar interações para além das formas estabelecidas, numa abordagem mais colaborativa e menos competitiva de trabalho, uma rede afetiva e efetiva que desenvolve relações de proximidade e horizontalidade num vínculo estreito com o lugar e com seus trabalhadores de arte, ao mesmo tempo que é possível utilizar e se beneficiar das verticalidades, das conexões dos pontos no mapa para uma construção de práticas e narrativas contra-hegemônicas. Quem sabe tecer modos desobedientes de organização. Ou, poderíamos dizer, de desorganização perante um cenário de arte que se propõe hegemônico, criando assim resistências e existências que se permitem singulares a partir de critérios próprios e conceitualizações escolhidas 13.
Nós nos propomos a pesquisar as diferentes cenas locais e comunidades de arte para além da capital e dos demais centros hegemônicos e seus inúmeros desafios 14, tais como a criação/participação de uma plataforma alternativa às formas tradicionais de divulgação, a documentação e memória das atividades e a elaboração crítica. O estudo das cenas locais traz em si a potência de mobilizar, pois organiza e torna visíveis conhecimentos, experiências, estratégias e táticas de ação e de produção e, certamente, dos lugares e agentes envolvidos na construção da cena, em que os trabalhadores das artes podem propor formas de ação, de visualidade e de solidariedades no campo.
Latente, portanto, não é somente sobre visibilidade, mas alquimia que transcende as polaridades e dicotomias, que seja potência de articulação, de criação de um instrumento diferenciado dos meios tradicionais de comunicação nas artes, possibilitando vozes mais diversas.
› Bella Tozini. CORPES - Dissidentes Exposição e Intervenção Urbana. Pinacoteca de Jundiaí - SP. Curadoria: Sylvia Furegatti
REFERÊNCIAS
BOMBARDI, Larissa. Agrotóxicos e colonialismo químico. São Paulo: Elefante, 2023.
BUSTOS, Guillermina; SEPÚLVEDA, Jorge. Asociatividades espontáneas. Individuos, colectividades y organizaciones en las escenas locales de arte. Curadoria Forense Latinoamérica, ago. 2023. Disponível em: https://curatoriaforense.net/niued/?page_id=3131.
DORLIN, Elsa. Sexo, gênero e sexualidades: introdução à teoria feminista. São Paulo: Crocodilo/UBU Editora, 2021.
FERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: UBU Editora, 2022.
LEIRIAS, Gabriela. 2019. Contribuciones desde una perspectiva espacial a la investigación de los Afectos Societales. Afecto Societal, n. 2, 2019. (Córdoba: Editorial Curatoría Forense). Disponível em: http://www.cooperativadearte.org/niued/afecto-societal-ii-descarga-el-fanzine/.
VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. São Paulo: UBU Editora, 2020.
Notas
* Referência ao livro Um teto todo seu, de Virginia Woolf.
A data 8 de março como o Dia Internacional da Mulher. Sobre o 8M, acesse: https://www.8mdasmulheres.com.br.
Para saber mais sobre a geografia do abismo, desigualdades entre norte e sul global, colonialismo químico, Larissa Bombardi.
Em entrevista a Jaider Esbell no Programa Diálogos: desafio para a colonialidade. UNBTV. Disponível em: https://youtu.be/qFZki_sr6wssi=1jBEYSmo1wKvJjDQ.
O lugar, portanto, produz-se na articulação contraditória entre o mundial que se anuncia e a especificidade histórica do particular. (SANTOS, 1994)
Assim, conforme sugere Chico Science, “Que eu me organizando posso desorganizar, que eu desorganizando posso me organizar”, desorganizando certo sistema imposto, podemos assim nos organizar em narrativas em que nos sentimos pertencentes, coautores e cúmplices. Realizei um texto no contexto de uma residência Afecto societal em que parte dessas ideias são desenvolvidas.
O estudo das Cenas locais pode ser aprofundado pela pesquisa da Curadoria Forense.
Gabriela Leirias
Curadora, pesquisadora e produtora, realiza projetos de arte contemporânea a partir de discussões sobre território, corporalidades, natureza, cartografias alternativas e arte pública. Mestra em Artes pela ECA/USP, especialista em História da Arte Moderna e Contemporânea pela EMBAP/PR e graduada em Geografia pela FFLCH/USP, trabalha com metodologias colaborativas e transdisciplinares e desenvolve laboratórios nas interseções entre práticas artísticas e pedagógicas. É coordenadora e curadora do Projeto Jardinalidades, que realiza ações de pesquisa e produção em arte contemporânea desde 2014. Em 2023, realizou o projeto Poéticas e possíveis sobre a terra e o território, premiado pelo edital ProAC – Formação em arte e cultura. Em 2024, realiza o projeto Poéticas de las tierras, num intercâmbio com artistas e gestoras do México.
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