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TRANSMUTAÇÃO TÊXTIL


Ateliê TRANSmoras



É um espaço de produção de moda, arte, cultura e ativismo que, nos últimos anos, adquiriu diversas vertentes, atraindo pessoas e ampliando sua atuação para áreas como educação, políticas públicas e espiritualidade. Inicialmente voltado à comunidade trans, para acolhimento, criação de redes de apoio e geração de renda, suas atividades extrapolam reflexões e práticas identitárias, pensando o futuro e a vida no planeta. Problematizam a concepção de lixo, do que é rejeitado na sociedade, sejam objetos, produtos, ideias ou pessoas, denunciam o descarte contínuo de vidas e aplicam o prefixo trans como modo de vida, arte e ética diante da necropolítica.


Enquanto desenvolvia seu próximo projeto audiovisual, deslocando-se entre o deserto de Atacama, no Chile, e o Pará, Vicenta Perrotta, artista, estilista, ativista trans e fundadora do Ateliê TRANSmoras, conversou com a equipe da Revista Latente.




Ateliê TRANSmoras por Vicenta Perrotta



› Vicenta Perrotta. Foto: Danilo Sorrino

Vicenta Perrotta

Como surgiu o seu interesse pela moda?


Meu sonho sempre foi ser estilista. Sou de uma geração que foi orientada para ser, sei lá, engenheiro... Não era para atuar nessas áreas cria- tivas, porque já tinham pessoas (de outras classes sociais) que seriam direcionadas para fazer isso. Eu não cabia dentro desse mercado. Hoje acho que ocupo a moda desde uma perspectiva crítica, como uma plataforma que também pode trazer mudanças sociais. Isso se tornou uma tecnologia social que se chama Transmutação Têxtil. Mais que estilista, me vejo como educadora e como artista. Podemos usar essas plataformas para trazer transformações efetivas para a população. É uma maneira de devolver a necropolítica, vomitá-la em vez de assumir uma forma de vida que nos destrói.


Meu primeiro trabalho de pesquisa de design foi sobre as sementes e as fibras do Norte. Foi um processo muito importante para entender como é construído o processo ancestral, essa relação entre o meio ambiente e o corpo do ser humano. Para mim, quando se inventa a expressão “ser humano”, já é algo que animaliza. A expressão ser humano, para mim, já é um grande problema! Afinal, nós somos vistas como pessoas que não são humanas e estão fora desse processo de humanidade.


Com o desejo e a consciência de “fazer parte” desse ecossistema, eu vou criando o conceito de Transmutação Têxtil, produzindo uma moda sem recursos. Para conseguir entrar nesse mercado, passo a usar o material que está em torno de mim, material descartado, lixo, assim como os povos ancestrais produziam a partir do seu entorno, usando os recursos naturais para construir seus adornos, seu processo de memória e como você se apresenta, que hoje chamamos de roupa.


Eu produzo moda também no sentido de construir políticas públicas efetivas. Construí o meu processo criativo de maneira política. Essa consciência me fez entender como o sistema age e como a moda atua para alienar. Como o mundo quer me colocar e onde eu não quero estar. Dito isso, o que eu posso fazer para as outras pessoas como comunicadora e como ativista? Ser estilista para mim é um meio de me comunicar para criar políticas públicas para a população trans.



Você é fundadora do Ateliê TRANSmoras, como se deu a sua criação?


O Ateliê TRANSmoras surge porque eu fui expulsa de casa e descubro que na moradia estudantil da Unicamp tem um espaço ocioso, então eu consigo a chave daquele espaço e o ocupo para poder me organizar. Já trabalhava com lixo, o que me levou à percepção do meu entorno. Para mim, tudo que sai da fábrica já é lixo. Comecei a vender roupa em espaço público e a me organizar financeiramente, de uma maneira que vai contra o objetivo do Estado, no contrafluxo.

Percebo que as pessoas trans precisam acessar também esse lugar (de autonomia), então começo a atuar de maneira pedagógica. As pessoas começam a acessar esse espaço, e juntas começamos a desenvolver outras percepções dentro do ambiente da universidade, onde a princípio não existem pessoas trans. O Ateliê TRANSmoras surge desse lugar da falta, da necessidade de trabalhar, que nos leva a criar um modelo de negócio. Da falta surge uma solução.



Qual é o papel do Ateliê na sua vida?


O papel do Ateliê é difundir essas diversas vivências, a partir das minhas e das de outras pessoas envolvidas, que passaram por dores parecidas, que precisaram morar lá e atravessaram misérias, e começam a me ajudar a administrar toda a potência que acontecia naquele lugar.

Eu costumo dizer que ali é um mangue, porque ali dentro daquela lama social está cheio de nutrientes, e a gente soube filtrar o podre que a sociedade nos deixou para nos nutrir e fazer daquele espaço um lugar de abundância de pensamento e de saberes. Não entregamos o que eles queriam, que era a nossa depressão, a nossa morte, a nossa subjetividade.



Você está agora no deserto de Atacama, no maior lixão do mundo da indústria têxtil. Como está sendo a experiência e como ela se conecta com sua atuação ativista e artística?


No deserto de Atacama eu percebi que o lixo já virou um modelo econômico. Eu não posso chegar lá e colonizar, querer trazer uma solução, até porque não sou meio de produção. Lá eu atuo como artista e posso dialogar com artistas que estão trabalhando com o lixo, que são muitos. Posso apresentar a Transmutação Têxtil como uma expertise, de uma maneira que seja provocativa, compartilhar como eu me organizei para trabalhar com o lixo. Entendo que tenho de chegar aos lugares para trazer uma resposta social, no sentido de provocar esse pensamento crítico.

Somos pessoas latinas, e a Transmutação Têxtil foi um processo que teve impactos positivos aqui, no Brasil, então seria muito importante chamar a atenção de outros países, crescer como modelo de negócio e ocupar esse lugar conscientemente, como modelo de trabalho.



Qual é sua perspectiva de futuro com relação à moda e à indústria têxtil? Você percebe uma transfor- mação real nesse meio?


Eu não percebo uma transformação real na indústria, inclusive no que diz respeito ao meio ambiente e ao gênero. A indústria da moda precisa de gente alienada, o que vende é a ansiedade, o desejo e o fetiche. É mercadoria e exploração. Ela visa ao lucro, e o lucro sem exploração e sem alienação não existe. Mas, a partir da Transmutação Têxtil, eu vejo um futuro interessante, porque é o desligamento do sistema e a sobrevivência na precariedade. Nós aprendemos a viver no precário. Na pandemia, percebemos como estávamos acostumadas a viver no isolamento social e na falta, nós já tínhamos uma estratégia para viver no isolamento. A indústria quer que a gente morra, então não vejo muita saída para a moda, mesmo porque todos esses anos eu não vi mudança nenhuma, é calça jeans até hoje.



Você expôs seu trabalho em instituições importantes como ArtRio e MASP. O que isso significou para você?


Eu acho que amplifica o discurso como tecnologia e cria valor para o que fazemos, porque, se não é moda, é o quê? É têxtil? É memória? É arte? É um modo de criar outras formas para poder encaixar em outros lugares. A moda é um lugar que hegemoniza, faz tudo em série. Já as roupas do Ateliê TRANSmoras são obras, são indumentárias, elas provocam um impacto diferente no ambiente e no sujeito. Expor nesses lugares tem sido importante para difundir e amplificar a nossa proposta. Porque a transmutação têxtil é um processo jovem, não tem nem 10 anos. Esses espaços foram importantes para valorizar nosso discurso, para amplificar o conceito, para amplificar nossa voz.


Vicenta Perrota
Vicenta Perrotta
Vicenta Perrotta

› Vicenta Perrotta. Foto: Danilo Sorrino


 

Conversamos com Antonia Moreira e Luara Souza do Ateliê TRANSmoras em Campinas, situado dentro da moradia estudantil da Unicamp, um espaço de produção de arte, moda e cultura voltado à comunidade trans.


Ateliê TRANSmoras por Antonia Moreira


O TRANSmoras começou como uma ocupação pela Vicenta Perrotta em 2013, como um ponto de costura. Ela traz algumas pessoas para morar nesse espaço e começa a formar pessoas em corte e costura. Em 2017, torna-se um coletivo. Com a chegada da Rafaela Kennedy e minha influência, o coletivo se transforma em uma organização. Na equipe somos muito diferentes e muito complementares, cada uma foi acrescentando coisas a essa coletividade e entendendo o que era necessário fazer.


A gente nasce na Unicamp como uma ocupação, mas em determinado momento a Unicamp nos descobre, e a administração da época passa a nos perseguir. Foi muito importante trabalhar a narrativa da nossa história dentro daquele espaço e articular com os movimentos dentro da universidade, para que nos ajudassem a tornar compreensível que ali não estava se formando um grupo perigoso da universidade, ainda que subversivo. Atualmente, estamos em um diálogo mais aberto com a universidade, e isso abre outras questões: Como se manter autônomo? Como se manter independente? O que acontece quando o coletivo que era uma ocupação vira uma organização e passa por um processo de institucionalização na univer- sidade? São limites, tensionamentos, coisas que estamos vivendo, descobrindo e desdobrando neste momento. Ao mesmo tempo, é um processo de reconhecimento do nosso trabalho.


Entro no TRANSmoras em 2018, num momento em que tinha muitas questões com o meu corpo, a minha trajetória e as minhas vivências, e não conseguia nomear muitos dos incômodos que eu sentia. Quando conheci a Vicenta Perrotta e a Rafaela Kennedy e vi aquelas corpas na rua, eu vi, sem precisar de palavras, sem teoria, tangibilizar uma outra possibilidade do que eu podia ser também, mesmo ainda não tendo referências nem nome para aquilo.

Considero esse momento uma transição mental mesmo. Uma transição de gênero, uma transição de ser. E foi no TRANSmoras que consegui desenvolver esse lado e uma prática intelectual, artística e profissional.



Ateliê TRANSmoras por Luara Souza


O Ateliê TRANSmoras é uma grande organização que sempre refuncionaliza os espaços ociosos, o que é o público, o que é o Estado, o que são os domínios do Estado, como é a universidade... Fui conhecer meu contexto de bichice, de travestilidade, de descobertas do gênero e de rompimento com o gênero, diante dessas alternativas que estavam dadas e que a cisgeneridade nos coloca, a partir do Ateliê TRANSmoras.


Desde o Colégio Técnico de Campinas me envolvi bastante com o cenário da militância e com diversas coletividades, no contexto dos movimentos populares e sociais, que partem da ideia de tomar posse do que é nosso e muitas vezes não temos consciência. Eu frequentava muitas festas na universidade, acho que de fato as festas trazem esse contexto, do que é a ocupação da universidade para além do que é só ciência envolvida numa caixinha, para a sociedade. E foi aí também que descobri as oportunidades em uma universidade pública.


Frequentar o Ateliê TRANSmoras foi muito importante para o meu empoderamento. A partir da minha atuação com os movimentos sociais e dos diálogos sobre as cotas étnico-raciais surgiu o Núcleo de Consciência Trans, no qual conseguimos abrir uma nova discursiva sobre a importância e a necessidade de cotas para pessoas TRANS e travestis ingressarem nas universidades públicas.



Oficina Descolonize-se. Foto: Rafaela Kennedy

› Oficina Descolonize-se no Sesc Registro em 2019. Foto: Rafaela Kennedy




Transmutação têxtil


Antonia – Esse conceito foi cunhado pela estilista Bioncinha, inspirada no trabalho da Vicenta. Não nos servia simplesmente falar de Upcycling, um anglicismo, uma coisa que vem de fora e não compreende a dimensão daquilo que a gente estava falando, já que não era simplesmente pegar uma roupa do armário e dar uma cara nova. É sobre você questionar esse lugar do lixo, do que vai para fora da sociedade. A Vicenta começou pegando roupas abandonadas pelos alunos e recompondo uma roupa que não tem um gênero, que não tem um padrão específico P, M ou G. A gente sempre fala que a travesti é como o lixo da sociedade porque também é um ser jogado fora, mas ela questiona esse fora e se assume: “Estou aqui!”. Continuamos habitando neste mesmo ecossistema, nós estamos aqui por mais que queiram nos invisibilizar.


A Transmutação Têxtil foi desenvolvida como uma metodologia, é a base do nosso trabalho de Formação em Corte e Costura. Com o tempo, fomos acrescentando outras disciplinas. Apren- demos a precificar nosso trabalho e a montar um plano de comunicação e um plano de negócios e incluímos no nosso plano político- pedagógico, para que isso também pudesse ser compartilhado. Não formamos pessoas para o mercado de trabalho. Nossa preocupação é com a autonomia de geração de renda, para que elas possam fazer seus trabalhos, seja criar uma marca, reunir um coletivo ou formar uma rede, mas também incentivando outras linguagens. Dentro desses módulos, a gente fala sobre cidadania e direitos humanos, já que queremos formar pessoas engajadas e críticas para que saibam seus direitos.



Criando rede de ativismo e de afetos




Antonia – Fizemos um programa no ano passado cujo objetivo era formar novos quadros ativistas em Campinas, mas entendemos a importância de descentralizar os recursos que já são tão poucos para a comunidade trans e travesti. Então, abrimos para outras pessoas de todo o país. Formamos 17 ativistas que vieram para uma imersão presencial, com patrocínio da Embaixada Americana nos Estados Unidos e apoio da Unicamp. A gente reconhece esse lugar de privilégio pelo fato de estarmos ancoradas em uma universidade. Existem outros coletivos LGBTQIA+ que também trabalham com o lixo, também trabalham com a ressignificação dos conceitos, por exemplo, em Rondônia, na Paraíba, no Pará e em Santa Catarina, mas não têm o mesmo acesso que a gente aqui. Com isso, conseguimos estar em contato com todos os estados do país onde tem alguém fazendo Transmutação Têxtil, alguém que está fazendo um ativismo dissidente muito potente. No pro- grama de Movimentos e Narrativas acontece o nosso jornal e os desfiles. O documentário que já foi aprovado pela Lei Paulo Gustavo e uma série que a gente está tentando aprovar são formas da gente “brifar” visual e materialmente.


No Programa de Voluntariado recebemos pessoas cis ou transgêneras para adquirir experiências e para se transformarem junto com a gente. Por exemplo, graças a esse novo momento de diálogo com a universidade, no programa de Movimentos e Narrativas estamos desenvolvendo um programa de Memória, com o apoio de alguns bolsistas na Unicamp, para fazer o inventário do Ateliê: criar um acervo e construir a memória para registrar que não foi a Vicenta que arrombou a porta e colocou um monte de travesti doido naquele espaço. Diante da demanda de pessoas sendo expulsas de casa, ela tomou para si a responsabilidade de acolhê-las. Então sempre foi um espaço público, uma ocupação popular. Este momento de con trução da memória é um projeto de pesquisa importante para a universidade.


Luara – Desenvolvemos muita parceria com a primeira casa de acolhimento a pessoas trans e travestis em situação de vulnerabilidade, que é a Casa sem preconceito, organizada pela Susy Santos em Campinas. A gente tem também uma aproximação com a espiritualidade, que é um lugar negado aos corpos trans e travestis, de construção de autoestima e de cura. Nesse processo tem a construção do Xirê Axé dos Orixás da Dil Vaskes e da Pretinha Vaskes, que forma uma grande rede de pessoas que fazem coletas de materiais e resíduos recicláveis na cidade de Campinas, sobretudo em Barão Geraldo, um grande território e o último a abolir a escravidão. É composto de um núcleo fami- liar de pessoas pretas trans travestis com filhos, filhas, filhes, tanto de Santo quanto de sangue, que também trazem autoestima para o povo preto. Além disso, existem diversos outros terri- tórios com que a gente vai se entrelaçando e vai construindo nessa movimentação e articulação de historicidade. É muito importante como essas relações vão se dando.




Foto: Pedro Jorge

› Ativismo. Foto: Pedro Jorge




Arte trans?


Antonia – Minha pesquisa de mestrado surge da conversa de um curador com a Vicenta Perrotta em que ele argumenta que a nossa arte não vendia por ser uma arte trans e que em dez anos seria irrelevante. Para isso, respondo: A gente não está produzindo uma arte trans, nosso compromisso é com a vida, com a coexistência nesta terra. Estamos criando uma interseção com a pauta da mudança climática, de interse- ções de gênero, de etnias que vão para além do identitarismo, não apenas das pessoas trans. Na construção das nossas alianças ao longo da nossa história, nosso corpo sempre esteve muito próximo de outras pautas, não estávamos apenas trabalhando por inclusão no sistema, mas para realmente mudar as chaves de como esse sistema opera. Essa frase do curador é quase como uma pista do que vai acontecer no processo de apagamento, ou de onde vão nos colocar na questão de gênero, mas nós estamos falando de meio ambiente também.


Luara – Algo que me impactou no Ateliê TRANSmoras foi entender que todas essas articulações e movimentações podem se tornar um lugar de empoderamento econômico e de valorização do nosso trabalho. Quão valiosas nossas ideias são, como esses corpos precisam receber um retorno da sociedade, como profissões, como alternativas de construção de vida. São profissionais qualificados pela vida, seja de forma empírica, seja na construção técnica de tudo que a gente está linkando: o ecos- sistema, a ancestralidade, a transversalidade, para além do identitarismo, voltados para um caráter profissional, de monetização e remuneração.




O Ateliê TRANSmoras já é o futuro que queremos


Antonia – É viver isso no agora. Porque às vezes a gente pensa algo utópico de “construir um futuro melhor” ou que “a arte é um veículo para isso”. Acho que a arte é mais um veículo para tensio- namentos, para a expressão de alguma coisa ou para criar labirintos neste mundo que já está dado do que neces- sariamente uma visão do futuro. É preciso viver o agora, quebrar um pouco esse lugar idílico e utópico de uma ideia de arte para o futuro.


As transformações do corpo são também um processo artístico e estão muito ligadas à nossa vida, é indissociável. Então, a ideia de arte trans é muito limitante, porque na verdade é uma outra proposta de como a gente entende Arte e Vida, é experiência. A gente está aqui por outras pessoas, independentemente das identidades, que fazem esse rasgo colonial, esse rasgo com uma binaridade.


Quando a gente cria a conexão com o coletivo da Casa da Baixa Costura da Paraíba, que faz algo que reverbera na gente, cria a ponte direta com esse futuro, desses labirintos, como Castiel Vitorino fala, labirintos dentro do sistema. Eu acredito muito nisso: já temos aqui o que a gente quer viver. As próprias visões indígenas trazem uma outra proposta sobre mudança do mundo, você não precisa criar do zero.




Desfile Transclandestina. Foto: Vitória Leona

› Desfile Transclandestina, 2020. Foto: Vitória Leona



Tecnologias sociais


Luara – A nossa contraproposta é de resistência como potência e como aceleração, um sistema de catalisação das disputas dos poderes públicos, seja o Estado, sejam lideranças de movimentos sociais. Porque é importante disputar ideias e conquistar mentes e corações, pleitear esses lugares públicos como retomada do poder, mas não o poder para um, e sim a diluição desse poder. Cotas para pessoas TRANS e travestis são a oportunidade de conseguirmos trazer de volta o problema do Estado ao estado.


Quem cria e quem dialoga, quem rompe e quem constrói novamente outras oportunidades de ideias? Trazer novamente o povo ou as pessoas trans, os corpos indígenas, os corpos quilombolas, os corpos das mais diversas formas de acidentes possíveis, que foram impossibilitados de habitar espaços, com a oportunidade de construir novas formas imagéticas e construções para a sociedade, rompendo com o etno- centrismo para compreender a alteridade. Esse processo é tanto para agora quanto para o futuro e para o passado, porque quem conta a história hoje em dia, infelizmente, é quem está com as mãos cobertas de sangue. Mas eu acre- dito que outras pessoas vão construir essa história por outras elaborações – que podem ser de cura.


Arquivo e memória – o inventário do Ateliê


Antonia – A roupa da Vicenta que esteve na ArtRio e está sendo catalogada agora é a roupa que a gente usava. Embora ela possa ser colocada em um pedestal, em um manequim ou na parede, como apresentamos na ArtRio, é uma roupa que estava circulando entre a gente.

A roupa que o Museu de Arte do Rio (MAR) colocou em sua lista de desejos foi a Luara que usou em algum evento e a Brisa Flow usou no Lollapalooza. Neste momento não emprestamos mais porque está sendo catalogado para entrar no acervo. Mas a arte “don’t touch” nunca fez sentido para a gente. Para nós, a arte está no dia a dia, na nossa vida, nas roupas, nas indumentárias. É mais que uma vesti- menta ordinária e de baixa qualidade, uma indumentária que diz sobre o seu tempo, que tem um contexto. Por exemplo, a peça que está no MAR tem um monte de pedaços de bandeiras do Brasil porque em 2019 as pessoas estavam jogando fora, então diz muito sobre um momento.


Sempre que a gente elabora a memória deixa algo de fora. É um processo de escolhas entre aquilo que é apagado e o que deve ser lembrado, e para mim isso traz uma série de desafios. Muitas pessoas fizeram parte deste coletivo e colaboraram de várias formas, mas hoje não participam mais. Como elas podem estar presentes? É uma cristalização, no tempo, de algumas pessoas que compuseram a nossa história.


Como garantir que esse arquivo seja potente, conte histórias que não sejam limitadas pela instituição, que as pessoas possam ser imaginadas e desdobradas, tensionadas?

Hoje ninguém mora mais no Ateliê TRANSmoras, e isso reposicionou o que é para nós a ocupação daquele espaço, assim como transformar o coletivo em uma organização. Ainda estamos entendendo como isso afeta a nossa relação com outras pessoas trans.


“arte don't touch nunca fez sentido para a gente. Para nós, a arte está no dia a dia, na nossa vida, nas roupas, nas indumentárias."



ATM NO MUSEUAntonia – O Ateliê TRANSmoras no Museu


Antonia – O Ateliê TRANSmoras no Museu é um projeto de visitas guiadas exclusivas para pessoas trans. A ideia é que, a partir das nossas formações e do contato com a nossa rede, as pessoas frequentem mais esses espaços, tanto para conhecer quanto para imaginar e tensionar esses lugares. É uma proposta do Liah Ribeiro, uma pessoa transmasculine que trabalha em galerias de arte, que entende a abertura nas instituições, até para se atualizarem, cria atividades e uma agenda para circularmos nesses espaços. Uma das motivações é a pesquisa de impacto que realizamos em 2023, em que conseguimos validar algumas hipóteses, conseguimos ver que 76% das pessoas que passaram pelo TRANSmoras registraram aumento de renda, mas não conseguimos validar a hipótese de que nossos projetos as faziam frequentar e acessar mais espaços culturais. Não acessaram a cidade de uma maneira mais democrática.


NÃO HÁ DEMOCRACIA SEM TRAVESTI


Antonia – Quando participamos do programa de TV no desafio “The Wall” do Luciano Huck1, o mais impactante foi a Vicenta falando diretamente para as câmeras, num Domingo de Páscoa, para os pais não expulsarem seus filhos trans de casa.


Luara – Imagina a potência de não ser mais uma questão de representatividade, mas de pessoas próximas de você serem ouvidas em nível nacional. O que acontece quando esses corpos ocupam lugares em comum na socie- dade e no bem-estar, no sofá de casa ou no bar da esquina? Acho que foi muito bonito ver as travestis à luz do dia no domingo de Páscoa ocupando esses lugares. Infiltrando-se na família brasileira. Foi lindo, foi a Copa do Mundo!


Brasil, o país campãeo mundial de travestis. Foto: Otavio Guarino

Brasil, o país campeão mundial de travestis, 2019. Foto: Otavio Guarino


 

NOTA

  1. Assista ao vídeo acessando: https://globoplay.globo.com/v/11518633/.



 

Vicenta Perrotta

Estilista, Costureira, Arte Educadora é conhecida por produzir roupas e acessórios a partir de materiais de descarte da indústria têxtil , e transformá-las em novas peças, que dialogam, discutem e questionam o comportamento de consumo, principalmente o de moda. Trabalhando através da ressignificação de consumo a artista desconstrói as questões de gênero nas roupas, como por exemplo o binarismo. Padrões estéticos, como por exemplo a gordofobia. Machismo , racismo e transfobia, também são temas que a estilista problematiza e questiona em suas criações, formando um elo de compromisso não só com a sustentabilidade, mas também com o empoderamento dos corpos abjetos! Seu trabalho desconstrói o conceito de consumo e atrela a suas peças, uma visão alternativa para consumir e identificar comportamentos impostos pela indústria que são desnecessários para a nossa vida contemporânea.


Antonia Moreira

É diretora do Ateliê TRANSmoras. Formada em Publicidade e Propaganda, teve a oportunidade de estudar direitos humanos na Columbia University em Nova York no ano passado. É de Lins, no centro-oeste paulista, e desenvolve o TRANSmoras institucionalmente. É escritora e cria trabalhos de memória e história oral.


Luara Souza

É coordenadora de Relações Institucionais do Ateliê TRANSmoras, nascida e criada em Campinas, no contexto da Periferia do Jardim São Marcos. Estudante de Ciências Sociais na Unicamp. Diretora de gênero do diretório central de estudantes (DCE-2023 e 2024), membra do centro acadêmico do instituto de filosofia e ciências humanas (IFCH - 2023 e 2024), co-fundadora do núcleo de consciência trans da Unicamp, cadeira discente do GT de cotas trans (port. 48/2024), artista visual independente.







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