— Gabriela Leirias
Como já anunciava Félix Guattari em 1978, respirar se tornou tão difícil quanto conspirar. – Paul Preciado, 2023
Poderíamos aprender com as lagartas, transformando-nos o tempo inteiro: sendo esterco, sendo estrume, sendo gente de novo, sendo árvore, sendo outros seres. Mas o corpo da cidade bloqueia, o corpo da cidade interrompe esse fluxo de produção de vida a partir das suas fundações que se enfiam no corpo da terra de uma maneira totalmente invasiva. A cidade invade o corpo da T(t)erra. – Ailton Krenak, 2022
Enfermidades assolam os corpos humanos, não humanos e o corpo da T(t)erra. Desde o início da pandemia de covid-19 foi revelado que a propagação descontrolada do vírus com potencial de contágio em escala mundial não era um evento aleatório. Tratava-se do impacto, ou de uma res- posta, às intervenções constantes no planeta para sustentar certo modo de vida ditado pelo Regime Capitalista Petrossexorracial1, que se mostra não somente violento, mas suicida.
O que as pandemias, a escassez de água e de alimentos, o aumento da temperatura, o aumento do nível do mar, as inundações, a acidificação dos oceanos e os eventos climáticos extremos têm deixado em evidência, apesar da cegueira e do negacionismo que ainda paira, é que estamos todos envolvidos em escala planetária nesse “projeto” descontrolado. Não há um “fora”, um lugar onde não ocorra esgotamento dos “recursos”; onde se possam descartar os lixos industriais ou atômicos; em que não se viva assediado pelo capital financeiro, pelo turismo, pela especulação imobiliária, pelo agronegócio; um lugar que não seja direta ou indiretamente afetado. Vivemos o efeito da tempestade colonial (Malcom Ferdinand), com intensidade perturbadora evidentemente maior em contextos de vulnerabilidade social e econômica, que tem consequências potencialmente graves para a saúde humana e os meios de subsistência, que impacta a escala mundo2.
Ecoa por muitos lados um sentimento de impotência. São tantas questões, demandas e desafios que ultrapassam os níveis do imaginável e do suportável. Eu me recordo de que, quando os efeitos da pandemia de covid-19 começa- ram a amenizar, o psicanalista Christian Dunker preconizou que poderíamos esperar uma nova pandemia, ainda mais impalpável do que um vírus, a da ansiedade e da depressão. Somado às mudanças climáticas não são poucas as tentativas de nomear e diagnosticar o mal-estar: solastalgia, ecoansiedade, luto climático...
Antes que você desista deste texto - afinal, desistir é uma reação possível e legítima diante do que pode nos intoxicar de pessimismo e desespero -, o convite é para uma mirada em relação aos possíveis. Como práticas artísticas têm apontado caminhos e tentativas de insistência, resistência e existência que valorizam a dimensão do vivo e acolhem um campo ampliado de relações e incertezas?
Inicio propondo que a imagem Ser paisagem, de Laura Gorski, nutra nosso imaginário.
Esse corpo que se debruça sobre a terra com uma camada de argila pode se tornar um corpo-semente, potencialmente um corpo- -planta, um corpo-fruto, um corpo-terra. Feita durante a Residência Terra Una, essa imagem faz parte de uma fase na produção da artista em que as experiências em residências em áreas rurais e florestais provocaram outra relação com a paisagem, de quem a observa e desenha, para quem imerge, se contamina e sente o desejo de ser parte.
![Laura Gorski](https://static.wixstatic.com/media/99bda1_c6ab4527f0044cb196194b6ec9ba6522~mv2.jpg/v1/fill/w_980,h_373,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,enc_auto/99bda1_c6ab4527f0044cb196194b6ec9ba6522~mv2.jpg)
› Laura Gorski, Ser paisagem. Trabalho desenvolvido durante a Residência Terra Una,em Liberdade (MG), 2018.
A obra que foi exposta durante a exposição Jardinalidades, poéticas sobre corpo, natureza e cidade3, no qual fui curadora junto a Faetusa Tezelli, e teve grande importância no pensamento curatorial que investigava as possibilidades e as potencialidades dos jardins como linguagem nas artes, que instauraram um campo de experimentação que diz respeito aos plantios e aos cultivos, mas também das relações profundas do corpo com a terra. Tal imagem do corpo da artista convida a um exercício de imaginação com as escalas de uma semente e do corpo humano: e se fôssemos todos florestas em potencial? Um corpo que abre mão do “fazer” e de uma identificação com o humano, misturando-se com o solo.
O devir-floresta deve ser invocado como uma espécie de aríete para furarmos os muros da cidade, para ver se conseguimos convocar a floresta, outras experiências de vida, para nos arrebatar deste lugar que não tem saída. Lugar que tenho denunciado como um buraco negro que consome tudo, consome as hidrelétricas, consome energia nuclear, nos consome. Pois na corrida do progresso, precisamos atender à sua fome e à sua fúria. (Krenak, 2022, p. 216).
![Mariana Vilela](https://static.wixstatic.com/media/99bda1_1ad623d8df8c41c686e7b284d6019a3d~mv2.png/v1/fill/w_980,h_331,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,enc_auto/99bda1_1ad623d8df8c41c686e7b284d6019a3d~mv2.png)
Buscando uma alteridade radical, Mariana Vilela, artista que atualmente vive em Ubatuba (SP), mas morou em Campinas e no ABC Paulista, tem proposto em diferentes contextos a obra Vitaloceno, uma cabeça vegetal vestível que convida a experimentar um estado vegetal, tal como Emanuelle Coccia descreve, desse ente sensível que são as plantas, que não enxergam tal qual humanos, mas têm senci- ência e criam mundos de relações com sua presença. Artista com forte trajetória no teatro e na performance, experimenta no próprio corpo o vestir a cabeça para despir-se de tal protagonismo humano. Convida outras performers para partilhar a mesma experiência, mas, com o tempo e a confecção de outras cabeças vegetais, propõe essa experiência para grupos.
Mariana inventa o termo Vitaloceno em meio a um debate sobre o Antropoceno, que seria esta nova época geológica em que o humano gera transformações irreversíveis sobre as paisagens e os territórios. Embate que se dá no campo da ciência e na teoria para definir sua pertinência e seu marco de início.
Há muitas reflexões sobre o uso do prefixo antropos ao identificar e responsabilizar o humano de modo genérico. Existem cerca de 90 denominações já propostas, como: Tecnoceno (Hornborg, 2015), Plantationoceno (Donna Haraway e Anna Tsing, 2016), Capitaloceno (Moore, 2016), Chthuluceno (Haraway, 2016), Piroceno (Steven Pyne, 2019), Lixoceno (Armiero, 2021), Negroceno (Malcom Ferdinand, 2022).
O interessante é compreender que tais deno- minações questionam a responsabilidade do humano em si (afinal, de qual humanidade estamos falando?), problematizando diferentes aspectos e agentes envolvidos na caracterização desta época, ditando o modo de produção capitalista e a lógica colonial de exploração como o centro das violências sobre a (T)terra. Vitaloceno é, portanto, um termo poético para a instauração de uma nova época, menos humana e mais vegetal, empática e simbiótica, que torna visíveis mais as relações possíveis de troca e colaboração do que as fragmentações e as competições. Obras instauram mundos, mesmo que momentâneos, possíveis.
A artista realizou a performance em diferentes contextos artísticos, educativos e acadêmicos. Assim como no LAB Poéticas da Terra4 que realizei com sua participação em Campinas em 2023, em que pude experimentar a cabeça vegetal e vivenciar no próprio corpo seus efeitos, um outro tempo-espaço de escuta em que predomina o silêncio e a necessidade de mover-se mais lentamente5.
![Davilym Dourado](https://static.wixstatic.com/media/99bda1_40deeb296f7f4f60a81201995b1f1db1~mv2.png/v1/fill/w_980,h_507,al_c,q_90,usm_0.66_1.00_0.01,enc_auto/99bda1_40deeb296f7f4f60a81201995b1f1db1~mv2.png)
Davilym Dourado, fotógrafo há mais de 20 anos interessado nas paisagens e na intervenção do humano, recentemente iniciou uma investigação com as plantas por uma necessidade pessoal, cuidar da própria saúde. Crítico a uma abordagem da saúde compartimentada e rendida à indústria farmacêutica, busca caminhos mais diversos para esse autocuidado nas práticas não ocidentais, na ciência, na espiritualidade, nas ervas medicinais, estas que podem estar nos mais variados lugares.
É assim que realiza os projetos Jardins que Curam e a A Cidade Cura em São Caetano do Sul, onde vive. No primeiro, mapeia as plantas medicinais nos quintais buscando um diálogo com cada morador sobre as plantas medicinais existentes e sua relação com elas6. É dito, em alguns meios de erveiras, raizeiras, da sabedoria tradicional, que o remédio que nosso corpo necessita pode nascer muito próximo de nós, no nosso próprio quintal ou perto da nossa casa. Muitas vezes podem ser essas ervas, as tais daninhas, malditas, que são arrancadas por não fazerem parte da estética do jardim convencional: quebra-pedra, tanchagem, beldroega, amaranto, serralha etc.; muitas são, além de medicinais, comestíveis.
Em A Cidade Cura7, Davilym amplia seu raio de investigação e mapeia as plantas medicinais que nascem por toda São Caetano do Sul. Com esse título, provoca para outra relação com a cidade, que, com altos índices de poluição e contaminação tem de fato mais potencial de adoecimento que de cura. Além desse mapeamento — que se mostra quase infinito e, por vezes, efêmero, visto que tais espécies estão em risco constante devido ao paisagismo urbano e tem certa mobilidade por sua própria natureza desobediente —, Davilym mergulha numa interação plástica com as plantas. Nesse caso, a imagem fotográfica não basta, a pulsão é por criar imagens a partir delas com monotipias, desenhos e pinturas.
![Davilym Dourado](https://static.wixstatic.com/media/99bda1_37aac36ac15c47a2b9cdadfd05308b3d~mv2.jpg/v1/fill/w_980,h_881,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,enc_auto/99bda1_37aac36ac15c47a2b9cdadfd05308b3d~mv2.jpg)
› Davilym Dourado,
A Cidade Cura.
Mapa de plantas medicinais em São Caetano do Sul. Design Teresa Siewerdt.
![Davilym Dourado](https://static.wixstatic.com/media/99bda1_049b047930ab49eb932856b7f8fa1c57~mv2.png/v1/fill/w_980,h_1187,al_c,q_90,usm_0.66_1.00_0.01,enc_auto/99bda1_049b047930ab49eb932856b7f8fa1c57~mv2.png)
Algo interessante é a realização de pinturas com o uso de tinturas das plantas encontradas. A tintura é uma solução feita por meio da extração do princípio ativo da planta utilizando álcool. Há outros métodos, mas nesse a planta é mergulhada em álcool e lá permanece por pelo menos 15 dias. Ao usar a tintura como tinta, procedimento pouco convencional, de certo descontrole dos resultados, interage não somente com a forma da planta, mas com algo mais imaterial que atua no corpo.
![Davilym Dourado](https://static.wixstatic.com/media/99bda1_aeef852718ae46d48ee32f9a197b33f8~mv2.png/v1/fill/w_980,h_874,al_c,q_90,usm_0.66_1.00_0.01,enc_auto/99bda1_aeef852718ae46d48ee32f9a197b33f8~mv2.png)
Nas pinturas, percebemos uma busca e um abandono da forma, um jogo entre o controle e o descontrole, entre o desejo e a fuga. Um trabalho em processo que lança flechas de experimentação sensível de uma relação que se aprofunda com as plantas, bus- cando um modo de linguagem e comunicação com elas.
Para Ailton Krenak, as cidades são metástase que geram adoecimentos múltiplos, inclusive nas águas dos rios. Dessa constatação sobre os rios enfermos nas cidades, Gustavo Caboco, artista Wapichana, de Curitiba e de Roraima, ao realizar uma obra site specific e participar da exposição Jardinalidades, lança o olhar a existência do rio-esgoto. O rio Tamanduateí é incluído e cria um continuum no espaço expositivo; não está somente ao lado da exposição, nós é que estamos na sua área de várzea. Uma área extremamente transformada, pois esse rio tão fundamental no processo de ocupação da cidade e do estado de São Paulo, onde os primeiros povos originários se estabeleceram, foi retificado e perdeu os meandros sinuosos da sua forma original. Poluído pela lógica nefasta e rodoviarista e da relação que se construiu com os rios, os esgotos são lançados para o rio. Ele é um esgoto a céu aberto.
![Gustavo Caboco](https://static.wixstatic.com/media/99bda1_4011549d43824047b246bb71a65db8d3~mv2.jpg/v1/fill/w_495,h_682,al_c,q_80,enc_auto/99bda1_4011549d43824047b246bb71a65db8d3~mv2.jpg)
› Gustavo Caboco.
Olhos de Jenipapo,
Gruta de Santa Luzia, 2019.
O artista junto ao grupo de pessoas do educa- tivo e da pesquisadora Paula Berbert, busca sua nascente. O Tamanduateí nasce no município de Mauá e se mantém limpo até chegar à cidade, que se converte num ente em coma, morto-vivo. Na nascente, o que vivenciam é o rio vivo. Tamanduateí, o rio do Tamanduá verdadeiro em tupi-guarani. Por ser rio de planície, intermiten- te, em sua ampla área de várzea, suas margens se modificam ao longo dos anos. Na vazante, no período de estiagem, quando secava ficava repleto de peixes, os peixes secos, justamente como foi conhecido São Paulo de Piratininga. Piratininga, ou o do Peixe Seco, que atraíam as formigas saúvas, que atraíam os Tamanduás, que atraíam os humanos; um ciclo vivo.
Gustavo leva sementes de jenipapo à nascen- te do Tamanduateí e fala de sua existência no bordado do Manto Rio, que fez junto à sua mãe Lucilene, que presentifica o rio vivo com seu traçado sinuoso e elementos que ajudam a contar outra história. Assim como nas oficinas de lambe-lambe e cartazes que realizou, traz sua memória e constrói outras, procedimen- to que o artista tem fortalecido em sua prática e sua poética por meio de livros e exposições, seja recontar a história de Makunaima, do Bendegó, da Borduna Wapichana, e em múltiplas linguagens com performance sonora, pinturas, bandeiras, instalações. Processo de tornar visível, de trazer outras narrativas, outras vozes, do seu povo ou de outros povos originários, conectados com seus territórios e tensionando as narrativas “oficiais” e as instituições.
A atuação no campo do simbólico é mais potente que parece. O geógrafo Milton Santos abordou nos anos 1990 o conceito de psicoesfera e como o campo dos pensamentos, dos sentimentos e das emoções são potência de espaço, se materializam no espaço. Felix Guattari, desde os anos 1980, traz a noção de ecosofia para abordar as três ecologias, mental, social e ambiental, como dimensões interconec- tadas. O que se torna muito evidente na discussão sobre os rios urbanos, afinal, paulatinamente as mobilizações artísticas e ativistas têm feito mudanças em relação aos rios. Ações simbólicas e concretas: desenhar, pintar, escrever, performar, abrir nascentes, criar cursos de água, grafar no espaço sua existência, limpar, cantar, dançar os rios. Criar imagens com IA que traduzem sonhos coletivos.
O (se)cura humana8 realizou em 2019 uma ação no mesmo contexto da exposição Jardinalidades, criou o Rio Paralelo Tamanduateí: uma estação de biotrata- mento que possibilitou sua limpeza e um circuito com água limpa visível na exposição. Envolveu também uma performance em que coletavam a água do rio-esgoto Tamanduateí, esta tóxica e contaminada, e levavam para dentro da exposição. Foi a primeira experiência do coletivo num espaço expositivo fazendo, então, um trânsito do ativismo para o mundo das artes. Nas suas ações, esse coletivo experimenta multiplas táticas para problematizar a relação com os rios. Cada vez mais afirmam as conexões entre o modo como nos relacionamos com os rios e a natureza como um todo, numa escala de ação que pensa o Atacama e a Amazônia, o lítio e a cidade, e o aspecto vital das águas para a manutenção da vida.
![(se)cura humana](https://static.wixstatic.com/media/99bda1_8400377f93b7454d9fc6c361664074d5~mv2.jpg/v1/fill/w_980,h_561,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,enc_auto/99bda1_8400377f93b7454d9fc6c361664074d5~mv2.jpg)
› (se)cura humana, Performance na obraRio Paralelo Tamanduateí na exposição Jardinalidades – Poéticas sobre natureza, corpo e cidade no Sesc Parque Dom Pedro II, São Paulo (SP), 2019.
Foto: Gabriela Leirias
Na residência artística Cidades Utópicas e (im)possíveis, em Osasco (SP)9, envol- veram artistas locais para a criação de intervenções urbanas e um documentário10. Foram muitas ações para investigação dos rios poluídos de Osasco e ações práticas, como reativar a nascente no Parque Ecológico Dionísio Álvares e o rebatismo do rio Guatá Porã por Daniel Wera, indígena Guarani da Aldeia Pindo Mirim – Terra Indígena Jaraguá. A partir do registro dessas ações, apropriaram-se da alta tecnologia de IA para criar imagens que materializam imaginários e mundos utópicos. Explicitamente provocados pelo conceito “Futuro Ancestral”, de Ailton Krenak, afirmam que é possível sonhar com um novo modelo de cidade, reimaginar e reinventar o espaço urbano com criatividade e respeito pela ancestralidade, enaltecendo a vida, o encontro e a convivência coletiva. Trazem como caminho a presentificação da vida!
“O rio é a entidade mais ancestral, a água que a gente bebe é a mesma desde a formação do mundo, é o bem mais vital do ser humano. Os rios são os ancestrais que contam a história do mundo. A água é formadora do mundo e das sociedades, das comunidades. O corpo tem 70% de água e no mundo há apenas 0,2% de porcentagem de água potável disponível.” (Flavio Barollo)
O esgotamento da água, compreendida somente como recurso, compromete a própria vida. E como salienta Krenak, a vida não tem de ser útil, é uma fricção, uma dança cósmica. Para além da visão fragmentada e dual da natureza, teóricos, artistas, pensadores indígenas e não indígenas e quilombolas têm questionado essa abordagem dicotômica e apontado seus riscos, bem como defendido a ideia de que as violências históricas empreendidas sobre os corpos e os territórios têm a mesma raiz. É evidente o vínculo do corpo com a terra, o que assistimos de enfermidades, a contaminação e a poluição afetam diretamente o corpo (somos 70% água!) e com toda a alimentação baseada na agricultura, do que vem da terra.
Por essa razão, tem-se colocado a questão do cuidado mais que humano, que envolve evidentemente os corpos humanos e não humanos, a terra e o território, numa indissociabilidade entre a saúde do corpo e do entorno. De que modo podemos pensar na saúde das pessoas, sem pensar no que dá sustentação a elas? Como é possível pensar em corpos sãos, sem pensar na terra, no ar, nas águas, nos territórios sãos?
Ainda é possível falar de cura? Curar as cidades pode curar a nós mesmos? São convites e provocações que buscam proliferar e contaminar os imaginários evidenciando as possibilidades que não parecem ser permitidas de ser pensadas. A arte, assim como a vida, não é útil. Justamente por essa razão pode ativar percepções e sensibilidades, apontar caminhos que sejam respiros diante da nuvem tóxica. Cultivar imaginários é um caminho potente.
![(se)cura humana](https://static.wixstatic.com/media/99bda1_2d66473bd1a045e9a80a829b6c5508ff~mv2.jpg/v1/fill/w_980,h_635,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,enc_auto/99bda1_2d66473bd1a045e9a80a829b6c5508ff~mv2.jpg)
![(se)cura humana](https://static.wixstatic.com/media/99bda1_0e11049eebea4d78ab5849e93582e0da~mv2.jpg/v1/fill/w_980,h_392,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,enc_auto/99bda1_0e11049eebea4d78ab5849e93582e0da~mv2.jpg)
Neste sentido podemos finalizar este percurso por hora evocando um esperançar tal Paulo Freire, ou um otimismo, segundo Paul Preciado. Ele o afirma não como um sentimento psicológico de esperança, mas como metodologia:
O otimismo é uma metodologia. Temos a capacidade coletiva de tomar consciência do que está ocorrendo e, pela primeira vez na história, compar- tilhar essa experiência em escala planetária: intercambiar tecnologias sociais, conhecimentos, preceitos, afetos e fazer com que as práticas e saberes que até agora eram subalternos possam ser compartilhados transversalmente. (Paul Preciado, 2023, p.530)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENÖHR, Jens; ELLENA, Nicole; GARIMANI, Tania; SÁNCHEZ, Macarena. Naturalezas Diversas. FANZINE. Chile, 2024. Disponível em: https://endemico.org/edicion/fanzine-naturalezas-diversas/.
KRENAK, Ailton. Saiam deste pesadelo de concreto! In: ANDRÉS, Roberto; CANÇADO, Wellington; MARQUEZ, Renata; MOULIN, Gabriela. Habitar o Antropoceno. Belo Horizonte: BDMG Cultural/Cosmópolis, 2022.
LEIRIAS, Gabriela. Jardinalidades: potencialidades do jardim como linguagem nas artes visuais. ClimaCom – Políticas vegetais [on-line], Campinas, ano 9, n. 23., maio 2022. Disponível em: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/jardinalidades/. Acesso em: 2 nov. 2024.
PRECIADO, Paul B. Dysphoria mundi: O som do mundo desmoronando. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.
ROLNIK, Sueli. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 edicões, 2018.
NOTAS
1 Diante das muitas possibilidades de termos que podem ser utilizados, que arriscam cartografar as violências históricas coloniais que sempre se atualizam, sugiro aqui a denominação provocativa de Paul Preciado, que, além de situar o aspecto econômico, evidencia a legitimação da destruição dos ecossistemas e dominação de certos corpos sobre outros. Sendo petro – combustão de energias fósseis e sexorracial – classificação social dos seres vivos de acordo com as taxonomias científicas modernas de espécie, raça, sexo e sexualidade.
2 Em 2021, o Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC) finalmente reconheceu o colonialismo como um motor da crise climática, como um processo contínuo que está a exacerbar a vulnerabilidade climática em comunidades em todo o mundo. (Ambientalismo Interseccional de Constanza López, Jens Benöhr e Consuelo Herrera in Naturalezas Diversas)
3 A exposição ocorreu em 2019 no Sesc Dom Pedro II na cidade de São Paulo. Para saber mais LEIRIAS, Gabriela. Jardinalidades: potencialidades do jardim como linguagem nas artes visuais. ClimaCom – Políticas vegetais [on-line], Campinas, ano 9, n. 23 maio 2022. Disponível em: https://climacom.mudancasclimaticas. net.br/jardinalidades/
4 O LAB Poéticas da terra fez parte do projeto “Poéticas e possíveis sobre a terra e o território” que envolveu seminários e encontros no Centro Cultural São Paulo, em Campinas, em São José dos Campos e em Ubatuba. Para saber mais, acesse: @jardinalidades.
5 Nesta escala do corpo que se mistura com a paisagem, o trabalho Mistura de Marina Guzzo, propõeum “fazer-com” nos atributos de Donna Haraway. Uma obra colaborativa com as plantas e mulheres em corpos-paisagem, em experimentar outros estados de ser. Nesta edição, a artista e pesquisadora compartilha sua experiência no texto “Dançar cuidados mais que humanos”.
6 Para conhecer a pesquisa, acesse: https://www.jardinsquecuram.com.br.
7 Tive o prazer de acompanhar o processo de pesquisa do artista e fazer a curadoria da exposição que ficou
em cartaz de 28 de setembro a 9 de novembro de 2024 no Armazém do Campo, em São Caetano do Sul.
8 (se)cura humana é um coletivo de criações artísticas, artivistas ambientais, urbanas e aquáticas, fundado e conduzido por Flavio Barollo (videoartista e performer) e Wellington Tibério (geógrafo e doutorando pela USP).
9 A residência artística “Cidades Utópicas e (im)possíveis” foi realizada durante o FestA! – Festival de Aprender no Sesc Osasco, no mês de julho de 2024.
10 Para assistir ao documentário Residência artivista cidades utópicas e (im)possíveis, com (se)cura humana, acesse: https://www.youtube.com/watch?v=n26TbKlSji8; ou a página do coletivo: https://www. securahumana.com/post/cidades-utopicas-impossiveis.
Gabriela Leirias
Curadora, pesquisadora e produtora, realiza projetos de arte contemporânea a partir de discussões sobre território, corporalidades, natureza, cartografias alternativas e arte pública. Mestra em Artes pela ECA-USP, especialista em História da Arte Moderna e Contemporânea pela Embap/PR e graduada em Geografia pela FFLCH-USP, trabalha com metodologias colaborativas e transdisciplinares e desenvolve laboratórios nas interseções entre práticas artísticas e pedagógicas. É coordenadora e curadora do Projeto Jardinalidades, que realiza ações de pesquisa e produção em arte contemporânea desde 2014. Em 2023, realizou o Projeto Poéticas e possíveis sobre a terra e o território, premiado pelo edital ProAC – Formação em arte e cultura. Em 2024, realiza o Projeto Poéticas de las tierras, num intercâmbio com artistas e gestoras do México.
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