— Célia Barros
› Arquivo de registros de caminhadas 2014 - 2020, de Tamara Andrade. Fotos: Tamara Andrade
› Tamara Andrade
Caderno_Romaria
São Luís do Paraitinga(SP), 2017. Foto: Tamara Andrade
Após dois acontecimentos trágicos separados pela distância de um mês, A e B decidem ceder tempo a um desejo comum que não encontrava chão na vida que era delas. A e B são mulheres, têm quase 40 anos, mas ainda não sabem disso. Nas travessias que farão juntas, sozinhas e em outras companhias, o componente etário se fará cada vez mais presente. O passo que se repete transfigura de sentido.
A tem pés delicados e fazem bolha recorrentemente, B tem pés de cavalo e nunca teve uma bolha só. A gosta do silêncio da caminhada, B diz que sim, mas seu ascendente é sinônimo de gralha. O percurso silencia a conversa.
A caminha porque sim e raramente faz fotos. B também caminha porque sim, mas organiza processos meticulosos de planejamento da caminhada, recolhe dados, fatos e detalhes, registra poeticamente a experiência. A perde-se facilmente e tem fraca memória visual. Felizmente, B guarda uma pastinha com todos os caminhos feitos e sonhados.
Ambas se esquecem de ter medo.
Duas mulheres caminham uma noite inteira, lado a lado, numa estrada de terra, iluminadas pela Lua, sentindo os riachos se aproximarem pelos arrepios no corpo. Uma treme de frio e tropeça de sono. Outra transpira insone.
Duas mulheres definem um ponto zero na cidade onde moram e de lá desenham percursos que farão com os pés. Ir até o aeroporto1 e voltar. Chegar ao fim da estrada que foi asfaltada. Sair para saludar o velho Jequitibá2 e pegar o ônibus na volta se os pés doerem. Contornar o banhado3.
Duas mulheres imaginam percursos. Entendem os obstáculos, planejam contornos possíveis, escanteiam o tempo que só vai – para se demorar caminhando e silenciando.
› Aeroporto Professor Urbano Ernesto Stumpf, São José dos Campos(SP), 2017. Foto: Célia Barros
Apesar da bibliografia já existente, caminhar não é uma arte. Não requer técnica, habilidade, capacidade de expres- são. Diferentemente do ato de pensar, que implica em si mesmo uma ação criativa, não existe desafio a ser superado na forma automática em que movimentamos os membros inferiores para nos deslocarmos no espaço.
Também não é um esporte. Não emagrece significativamente, não fortalece a musculatura nem produz embate suficiente na estrutura óssea para ampliar a sua resistência. Não produz endorfina que garanta a felicidade. É difícil competir em caminhada, embora as pessoas tentem: aumenta-se a quantidade de quilômetros percorridos de uma só vez ou a sequência de dias caminhando. Diminui-se o tempo, reduzem-se as paradas.
Caminhar-se
Caminha-se porque sim. Apesar das bolhas nos pés e das demais assaduras, do cansaço, do desafio das subidas, da instabilidade das descidas, da força do sol no cangote, do risco de chuva ou tempestade, do medo de se perder ou ter maus encontros no caminho.
É apenas uma prática, um exercício que altera o seu estado de espírito, a percepção do tempo. Afeta diretamente o funcionamento dos intestinos e esvazia o olhar. Caminha-se para ir mais devagar, como quem desiste. Caminha-se desenhando com o corpo o vento que se quer receber nas costas, procurando texturas para pisar no chão, achando brechas de horizonte na paisagem.
› Caminhar implica desvios que afetam especialmente um tempo no corpo. Como se dobrar sobre si mesmo e retirar as botas para atravessar um rio.Travessia da Ponta da Juatinga, Paraty (RJ),guiados por Filipe Vieira.Carnaval de 2024. Foto: Rui Corrêa
Derivar como Jujuba*
› Desembocar numa floresta de bananeiras percorrendo a Trilha do Ouro na Serrada Bocaina, que cruza os estados doRio de Janeiro e São Paulo, 2023. Foto: Célia Barros
A sai para um dos seus roteiros breves em torno de casa. Seus caminhos definem-se pela previsão do som: carros passando rápido, buzinas, ruído de obras, restos de música alta, perturbam o andar. Além de tempo e liberdade, leva consigo as chaves de casa, os tênis antifascite plantar e o cartão do banco, vai que do nada vem uma vontade de ir ao banheiro.
Os caminhos se repetem. É óbvio que dar a volta duas vezes na praça e sair na rua curva, onde as árvores diminuíram o intervalo da calçada, tem outro gosto. Por mais que não controle o tempo (antítese do caminhar) sabe que aquele percurso tarda uma hora.A menos que decida variar e seguir em frente apesar do sol e da falta de sombra. Talvez se lembre daquele outro caminho que pode ter sofrido alterações.
Ela sofreu alterações.
A estrada de terra começa logo após o grande condomínio privado e o som de mato sobe estonteantemente.
A diferença no caminho é a porteira. Antes A titubeava lentamente, até sentir que aquele espaço não lhe pertencia mais, agora não há dúvida.
Pé na Cidade
Aquele projeto escrito e enviado, nunca realizado:
Queríamos saber em que medida é possível para duas mulheres transitar nesta cidade.
Qual é o limite do corpo para compreender este espaço? Qual é a dimensão do direito de ir e vir em São José dos Campos? Na capital do Vale, as paisagens oscilam entre o cenário da alta tecnologia e as diversas tradições ligadas ao meio rural. Cidade que se desenhou entrelaçando a Dutra, é facilmente percorrida de carro por meio do Anel Viário. Cidade-chave no eixo São Paulo–Rio de Janeiro, com aeroporto e Centro Técnico Aeroespacial, é tangenciada pelo banhado e pela Serra da Mantiqueira.
Saindo do centro, até onde conseguimos chegar caminhando a pé? Que paisagens atravessamos? Que deslocamentos são provocados? Que outros centros se dão na mesma cidade? O projeto previa articulação com as secretarias de Planejamento Urbano, Esporte e Lazer, além de centros culturais e comunitários dos bairros envolvidos.
Sonhávamos em cativar para a prática do caminhar como conhecimento e exercício da cida- dania. A caminhada se desenhava como prática estética, nesse caso, em que o olhar e o uso do corpo no espaço público configuravam uma performatividade que não começava nem terminava na arte, mas inevitavelmente flertavam com as suas linguagens.
› Célia barros e Tamara Andrade
Esboços para Pé na Cidade – Guia de olhares em São José dos Campos.Projeto não realizado, 2016.
› Prateleiras do Parque Nacional de Itatiaia, roteiro de caminhada proposto por Patricia Stagi durantea Casero Residência, 2024. Foto: Thiago José
NOTAS
1 Entre 2019 e 2024, o Aeroporto Professor Urbano Ernesto Stumpfem São José dos Campos, deixou de realizar voos comerciais, tornando-se uma contraditória referência de mobilidade para os munícipes.
2 Com 500 anos de idade, o Jequitibá-Rosa é Patrimônio Ambiental do município de São José dos Campos, protegido pela Lei Municipal 8.259,de 10 de dezembro de 1993
3 APA Banhado, criada em 2002, protege uma área de grande relevância como ecossistema natural, totalmente integrado à paisagem urbana central de São José dos Campos, devendo o nome às cheias periódicas que alagavam a planície do rio Paraíba do Sul. O local ficava “banhado” de água e ainda hoje é considerada a “praia” joseense.
* Julieta Hernandez, a palhaça Jujuba, atravessava o Brasil em bicicleta quando faleceu em dezembro de 2023 vítima de feminicídio.
Célia Barros
É mestra em Produções Artísticas e Investigação pela Universitat de Barcelona. Desenvolve projetos de exposições em que articula ações de curadoria e mediação em arte contemporânea. Investiga os deslocamentos entre o artesanal e a arte contemporânea e as relações entre arte e saúde em processos expositivos. Destacam-se os projetos Encontros Êxtimos (2024-2023), Pausa Onírica (2020-2021) e Latente Incomum (2021); e as exposições Encontros Êxtimos, na Casa Contemporânea, em São Paulo (2024), e na Casa na Escada Colorida, no Rio de Janeiro (2023); Ocupação Xilográfica, no Sesc Birigui, em São Paulo; Alento, no Sesc São José dos Campos (2022); Xilograficamente, na Galeria de Artes Visuais – Sesi (2021); 14o Salão Nacional de Arte de Itajaí (2018); pedras são preciosas, em Botucatu, São Paulo, selecionado para o edital do ProAC (2016); e Curadoria Coletiva, com apoio do SISEM-SP (2014).
Comentários