Educação e arte no Acervo da Laje
- latenterevista
- 28 de jul.
- 10 min de leitura
— Vilma Santos e José Eduardo Ferreira Santos

Fundado e mantido pelo casal de professores Vilma Santos e José Eduardo Ferreira Santos e suas respectivas famílias, o Acervo da Laje, localizado no Subúrbio Ferroviário de Salvador, nasce sob uma perspectiva que integra a educação e a arte como pilares para a formação crítica, reflexiva e estética das pessoas que por aqui passam.
Historicamente, na periferia soteropolitana, a educação foi a base e a sustentação das lutas por moradia, educação comunitária, saneamento básico, saúde e acesso à cultura. As comunidades do Subúrbio Ferroviário de Salvador que surgiram nas décadas de 1970 e 1980, a despeito da pobreza, tinham associações comunitárias que organizavam moradores e moradoras para esses enfrentamentos com as esferas governamentais por causa de suas reivindicações. Hoje damos continuidade a essas lutas a partir da arte e da memória.
O QUE É E O QUE HÁ NO ACERVO DA LAJE?
O Acervo da Laje é composto de artes urbanas, periféricas, dessas que o Brasil e o mundo não estão acostumadosa ver, mas, quando as veem tentam sempre invisibilizar e colocar debaixo do tapete da história da arte e dosseus cânones hegemônicos.
É a velha história do povo que cria, então vem alguém e se apropria, e por isso apresentamos obras de arte produzidas na diáspora dentro das grandes diásporas, pois nosso “degredo” veio
da exclusão histórica brasileira quenos colocou nas periferias, pensando que jamais iríamos nos insurgir através dos campos que talvez sejam mais simbólicos para as elites, ou seja, as artes, as estéticas, as poéticas e nossos modos de criação. Criamos o Acervo da Laje como um espaço de memória da periferia e para a pesquisa em artes periféricas. Considerando que a maioria
dos museus se concentra no centro da cidade do Salvador, o Acervo da Laje é um dos primeiros espaços museais surgidos na periferia. Um ambiente que provoca deslocamentos estéticos dentro e fora da cidade, tencionando as noções de arte, assim como de centro e periferia.
O Acervo conta com uma extensa rede de colaboração de moradores das periferias, estudantes universitários, professores e agentes culturais e em 2014 participou da 3a Bienal da Bahia, na qual Carol Souza, Mila Souza e Lílian Ventura desenvolveram uma série de ações culturais de mediação, com oficinas de desenhode observação para crianças e bate papos na laje sobre temas relacionados às artes nas periferias, ações estas que foram se tornando atividades contínuas no Acervo da Laje.
A CASA – MUSEU – ESCOLA
O conceito de Casa – Museu – Escola é um dos diferenciais do Acervo da Laje, caracterizado pela possibilidade de,nos espaços periféricos, as pessoas se sentirem acolhidas em estruturas sem a rigidez dos museus hegemônicos, com espaços em que é possível interagir com as obras, dialogar, almoçar, deitarse em redes, levar mudas de plantas, estudar em ambientes permeados de obras de arte e artefatos de memória, pesquisar sobre o território, tudo isso próximo das nossas vivências, em razão da própria arquitetura das casas das periferias e suas lajes, que são ambientes de socialização, trabalho e festividades.
Nesse sentido, o Acervo da Laje tem como característica o acolhimento e a fruição dentro de casas abertas, nas quais visitantes vivem a experiência de ter a arte ao seu lado, no seu território, como parte da sua história, preservando a familiaridade das casas suburbanas, mas também educando como escolas e sendo espaços de memória, como os museus comunitários.
TRAJETÓRIA DE SEUS FUNDADORES
O Acervo da Laje tem em Vilma Santos, sua fundadora, a dedicação à educação de muitas gerações, em virtude do “reforço escolar”, em que acolheu,em sua casa e na casa de sua querida mãe, Dona Antônia, de saudosa memória, muitas crianças e adolescentes para estudar no contraturno da escola.
Ela também participou das Pastorais da Criança, Afroe Carcerária, e, nesse sentido, essas vivências integram suas experiências nas ações educativas do Acervo da Laje indicadas neste texto. Já José Eduardo Ferreira Santos, pedagogo, mestre em Psicologia e doutorem Saúde Pública, estudando travessias de jovens e repercussões de homicídio entre eles, atua na prevenção da violência por meio das ações estéticas e educativas do Acervo da Laje e lida com a curadoria e pesquisas.
O fato de ambos serem educadores contribui paraque as ações do Acervo da Laje sejam voltadas para a educação, a pesquisa e a curadoria, tendo as ações educativas primazia, pois fazem parte do cotidiano por meio de diversas proposições que se renovam no tempo.
A METODOLOGIA DO ACERVODA LAJE

Pensando o Acervo da Laje como um espaço de educação, arte e memória, geralmente as pessoas perguntam sobre nossa metodologia e como ela se desenvolve durante as atividades.
Para começar, o primeiro aspecto da nossa metodologia é o encontro humano, e ele pode ser intergeracional, com públicos diversos, e sempre o encontro como uma dimensão de ensino e aprendizagem e troca de saberes.
O segundo aspecto da nossa metodologia é uma espécie de pedagogia do não controle e da experiência como fator de aprendizagem. Por não controle entendemos que as pessoas precisam da liberdade dentro do espaço museal, da casa e da escola, isto é, podem tocar as obras, interagir com elas e fazer experiências que muitas vezes não são permitidas nos espaços mais hegemônicos, dadas as suas racionalidades, que são diversas das nossas, pois entendemos que muitas vezes, nos espaços hegemônicos, o controle do corpo e da mente é dado por diversos fatores.
No nosso caso, por ser um museu cuja premissa nasce da experiência da exclusão desses espaços nas periferias, contamos com a exuberância e a abundância de obras que permitem maior interação sem medo de danificações, visto que há uma grande reserva técnica que possibilita a reposição de obras, o que, por incrível que pareça, nunca foi necessário fazer. O não controle implica uma disposição de obras e artefatos de memórias com os quais as pessoas possam interagir sem medo, possibilitando a realização de experiências que vão além da contemplação ou da fruição, sendo permitido o toque, a manipulação, que consideramos importantes para o desenvolvimento de outras aprendizagens.
Outro aspecto importante da metodologia do Acervo da Laje é a formação contínua de todos os públicos que o frequentam: artistas, crianças, adultos, jovens, idosas, ou seja, todas as pessoas são formadas a partir do contato com as obras e com os fundadores do espaço, que continuamente têm um momento nas visitas e nas oficinas para apresentar o espaço, suas obras, sua história, além da mediação de Suely, que apresenta a exposição Memórias para Dona Antônia.
Essa formação contínua se dá como uma prática pedagógica para introduzir as pessoas no universo do Acervo da Laje e indica também aos acervos documentais do Cedoc Dona Coleta de Omolu, a Hemeroteca e a Sala de Música Clementina de Jesus. Os diálogos circulares ou em volta da mesa também se constituem como momentos de formação e aprendizagem, pois permitem
o contínuo desenvolvimento de ações educativas, fomentando questões sobre pertencimento, territorialidade, arte produzida nas periferias, autorias, além de histórias que só os protagonistas conhecem e são transmitidas pela oralidade, mas também na documentação existente no Acervo da Laje, como livros raros, recortes de jornais, fotografias etc. Esses diálogos são feitos tanto no Acervo quanto em outros espaços quando somos convidados a falar sobre a experiência. Outro aspecto da metodologia que consideramos importante é a realização das oficinas como uma atividade contínua que atravessa esses 15 anos de existência dos espaços do Acervo da Laje.
Por oficinas entendemos o momento de encontro pedagógico e de formação entre artistas e demais profissionais com os públicos que frequentam nossas atividades, e nesses encontros acontecem a transmissão, a proposição e a troca de saberes específicos por meio de técnicas e metodologias adequadas para que as aprendizagens artísticas e culturais aconteçam. Os resultados das oficinas geralmente se desdobram em exposições, novos acervos individuais e coletivos, que são polinizados no território.


EDUCAÇÃO, ARTE E MEMÓRIA
Educação, arte e memória são os pilares das atividades do Acervo da Laje, pois entendemos que educar é um gesto contínuo por meio de diversas proposições pedagógicas.A educação, para nós, tem um caráter emancipatório e de mobilidade. Educar, no Acervo da Laje, é
um ato contínuo dada a intencionalidade pedagógica existente no lugar, no qual as pessoas são convidadas a ler as obras, criticá-las, estabelecendo uma relação contínua de aprendizagens e troca de saberes.
Educar pela arte tem sido um convite a superar os estigmas em relação às nossas territorialidades periféricas, provocando experiências de pertencimento, e se dá, também, pela relação da educação com a produção contínua de memórias a partir das oficinas, pois entendemos a memória como uma ferramenta potente de criação de narrativas no presente, distante das narrativas hegemônicas.
Nesse sentido, dentro da educação, a arte cumpre uma função muito importante de elemento de criação, emancipação e criação de repertórios tanto imagéticos quanto de elaborações estéticas.
A arte tem um elemento que consideramos importante, que é o acionamento do protagonismo, promovido diretamente por meio das oficinas, nas quais emergem a criação, a formação e a fruição. Para que isso ocorra, é necessário que haja disponibilidade de materiais como lápis de cor, tinta, papel, madeiras, ou seja, estímulos e suportes para que novas obras surjam.

FORMAÇÃO ARTÍSTICA E EDUCAÇÃO

A formação pedagógica e artística no Acervo da Laje se dá diretamente pela orientação e pelos encontros com Vilma Santos, que é a responsável por todas as atividades educativas e de formação.
Mas essa formação acontece em diversos níveis. Primeiro com as/os artistas, com as/os quais Vilma tem reuniões e encontros para informar, formar e adequar as atividades
para as diversas idades de públicos que frequentam as oficinas do Acervo da Laje.
É ela e com ela que artistas proponentes das oficinas dialogam para discutir metodologias, formas de utilizar os espaços, a adequação destes para a realização das atividades, a disponibilidade ou não de materiais, especificidades dos públicos participantes, além das questões éticas, como as autorizações para participação e uso de imagem, e questões que envolvem a saúde ou a interdição de algum alimento, material
ou suporte que possa provocar danos à saúde, seja ela física, psíquica ou relacional.
E essas orientações também indicam de que maneira fornecer informações sobre como lidar com cada participante, respeitando suas especificidades. É muito importante formar artistas para propor as oficinas, pois entendemos que diversos aspectos pedagógicos, como o tempo de aprendizagem, a quantidade de pessoas presentes nas oficinas, a utilização de materiais e suportes adequados para cada faixa etária, a forma de falar e apresentar os conteúdos, a observação e o cuidado com materiais perfurocortantes, além da disposição do espaço para atender às necessidades fisiológicas, dentre outras, que podem emergir durante as atividades. É importante que essa formação artística esteja diretamente interligada às práticas pedagógicas, pois elas oferecem maior efetividade na formação e na aprendizagem, tanto dos educadores quanto dos educandos.
Nesses processos formativos, a presença e a mediação entre artistas e participantes das oficinas, ou seja, de educadores e educandos têm sempre a mediação de Vilma Santos, que é quem faz a interlocução com as famílias, particularmente as mulheres, mães das crianças que, por exemplo, também participam das oficinas. No entanto, quando participam das oficinas, o interesse delas se desloca para um campo mais relacionado ao autocuidado e a práticas em que a arte esteja voltada para suas demandas de fala, escuta, socialização e aprendizagem de técnicas que possam utilizar na vida cotidiana.
Há, nesse sentido, uma modificação da metodologia, que se torna, desse modo, cada vez mais elaborada em conjunto, em relação às mulheres e a seus desejos e aspirações. Nas oficinas com as mulheres, as cartografias afetivas sobre as experiências no território são momentos importantes de elaboração de memórias e narrativas que são socializadas e acionam o protagonismo diante de diversos aspectos do cotidiano.
Trabalhar com as mulheres em diversas oficinas de arte, autocuidado, memórias e cartografias afetivas têm sido o objetivo buscado pela arquiteta e mestranda em arquitetura Carol Souza, primeiro com o projeto Mulheres da APA (Área de Proteção Ambiental) do Parque São Bartolomeu e atualmente com as oficinas ministradas por Melissa Modesto, que têm atraído as mulheres do território pela necessidade de ter um tempo propício para elas, com novas atividades e oficinas que valorizam seus fazeres, seu autocuidado, sua autoestima e seu protagonismo.
Para atender a essa diversidade de públicos, é necessário que essa mediação pedagógica seja contínua, como um processo de formação de artistas que propõem oficinas para transmitir seus saberes, suas técnicas, e tudo isso promovendo troca de saberes e aprendizagens, além da finalização dos processos com interação e exposição das obras de arte produzidas.
Nesse processo de formação, além do tempo, temos como fatores determinantes a existência de lugares adequados para as oficinas, a disponibilidade de uma cozinha coletiva para a feitura e a distribuição dos alimentos, que também são fundamentais para a realização de cada atividade de formação, assim como a disponibilidade de banheiros, água potável e ambiente arejado e de conforto para atender às demandas necessárias para a efetivação do processo ensino aprendizagem.
Assim, a formação artística e a educação são processos contínuos para todas as pessoas que participam das ações do Acervo da Laje, como componentes indissociáveis de sua prática, pois permitem que haja processos educativos que atravessam as práticas artísticas como modo de elaboração contínua das experiências.
AS INTERFACES DIALÓGICAS ENTRE ARTE E EDUCAÇÃO: MOBILIDADE EM DIVERSOS NÍVEIS
Para o Acervo da Laje, a educação tem um papel muito importante na formação da pessoa, pois ela permite, dentre outras coisas, mobilidade em diversos níveis e sentidos: cognitiva, orientação para o futuro, criação de repertórios e aprendizagens. Por sua vez, a arte tem também funções importantes por causa de seus processos criativos e imaginativos, do acesso às diversas técnicas e da utilização de linguagem diversa, o que favorece o raciocínio e as habilidades de socialização e aquisição de novos conceitos.
Pensando na realidade de uma cidade como Salvador, os espaços de arte, em sua maioria, encontram-se no centro, o Acervo da Laje vem cumprindo a função de democratizar e oportunizar no território suburbano essas interfaces dialógicas entre arte, memória e educação, por considerar que também se faz necessária a presença de espaços de socialização e mobilidade através da arte nesses territórios, promovendo o acesso a ela como direito da cidadania, como política pública capilarizada que ofereça outros repertórios em territórios que continuamente são estigmatizados pelos meiosde comunicação e pela opressiva desigualdade brasileira, pois consideramos que a presença de um espaço de arte, memória e educação no território permite a formação das novas gerações para uma realidade mais diversa e culturalmente situada.


Vilma Santos
Mulher negra, educadora desde os anos 1990, foi coordenadora voluntária da Pastoral da Criança, da Pastoral Afro e da Pastoral Carcerária, fundadora do Acervo da Laje, no qual coordena a seção educativa. Realizou, como curadora e coordenadora, diversas exposições artísticas e é responsável pelas oficinas para crianças, jovens e mulheres.
José Eduardo Ferreira Santos
Pedagogo (UCSal), mestre em Psicologia (UFBA), doutor em Saúde Pública (UFBA), fez estágio pós-doutoral em Cultura Contemporânea (PACC – UFRJ), no Instituto de Psicologia da UFBA, no Programade Pós-Graduação em Família na Sociedade Contemporânea da UCSal, pelo Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD – Capes). Atualmente, é pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da UNEB. É curador e responsável, com Vilma Santos, pelo Acervo da Laje, que reúne obras artísticas e históricas do Subúrbio Ferroviário de Salvador e de toda a cidade.





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