— Vulcanica Pokaropa
› Vulcanica Pokaropa,
A cura é Travesti.
Pintura, 2020.Foto: Acervo pessoal
Me chamo Vulcanica Pokaropa. Travesti, 31 anos, artista visual, circense, doutoranda em Artes Cênicas. Nasci e vivi por longos anos seguidos em Presidente Bernardes, interior do Oeste Paulista, uma cidadezinha muito conservadora com 15 mil habitantes onde o que predomina são o agronegócio e o catolicismo. Ou seja, não temos centro cultural, não temos artesanato, e quase nada de cultura popular se mantém naquela cidade; só existe uma Folia de Reis no distrito do Araxãs, que ainda consegue executar sua tradição.
Demorei para me entender artista, não entendia que havia a possibilidade de me sustentar vivendo de arte. Das opções a que tinha acesso, achei que trabalharia com fotografia, que era a coisa mais artística com a qual algumas pessoas da cidade conseguiam se sustentar. Então, fiz minha graduação em Fotografia, mas percebi que fazer fotos de casamento e ensaio de ges- tante de fato não iria me realizar. Eu preferia os trabalhos autorais, criar histórias e pirações.
Só fui me entender como artista quando parti da minha cidade natal aos 21 anos para morar em São Paulo e descobri a imensidão de práticas que eram possíveis de ser exploradas. Tive contato pela primeira vez com teatro, performance, circo, festas com que eu me identificava acontecendo na rua à luz do dia, com oficinas de diversas linguagens de forma gratuita. Descobri que exis- tiam coletivos artísticos, e isso abriu portas na minha mente, já que sempre fomos de andar em bando por Bernardes, formar grupos grandes de pessoas que se conectavam. Mas, para articular trabalho, nunca havia acontecido e, para mim, naquele momento, era bem importante estar junta coletivamente para dar peso e força às coisas que queria fazer e para ter suporte para transicionar, já que nesse momento comecei a ter mais entendimento sobre meu gênero. Sinto como se uma venda fosse tirada dos olhos nesse ano que passei em São Paulo.
O grande problema dos interiores é a falta de acesso e de diálogo, sobretudo quando as religiões pentecostais e neopentecostais atuam de maneira muito forte nos territórios. É como se, de fato, colocassem uma venda nos olhos das pessoas, impondo uma única opção de vida e impedindo outras escolhas. Um exemplo disso é a forma como as pessoas me tratavam antes de ter contato comigo: virando a cara, às vezes mexendo comigo na rua, insultando. Mas, depois das ações que vou citar abaixo e de se aproximarem de mim e entenderem que sou tão humana quanto eles, a atitude mudou completamente. Para que isso se mantenha, é necessária a manutenção do contato e das relações; caso contrário, acabavam voltando para o mesmo estágio inicial, já que as religiões e o estado fazem sua ação cotidianamente.
Digo isso pensando na minha trajetória artística dentro da cidade. Fiquei um ano em São Paulo e, assim que voltei a morar em Bernardes, criei um coletivo de arte chamado Coletivo K-iá, no início de 2015. Inicialmente éramos duas pessoas, eu e Larissa Omito, depois foi ampliando, e entraram Jessica Balizardo, Brayan Lopes, Viviane Vilhena, Gabrielle Vilhena, Paulo Reis, Breno Lopes, Samuel Nunes, Julia Kanashiro e outras pessoas que sempre agregavam. Conseguimos nos organizar por dois anos seguidos, fazendo atividades diaria- mente, sempre gratuitas.
Começamos com Cinema ao ar livre, em que a gente exibia filmes nacionais nas praças dos bairros e dos distritos da cidade. Oferecemos oficina de construção de máscaras nas escolas, e essa atividade foi uma das que mais me marca- ram. O ambiente escolar é problemático, são várias camadas de situações desagradáveis que aconte- cem naquela estrutura, sobretudo para crianças e adolescente que fogem da norma. A relação que conseguimos construir com as turmas ultrapassou minhas expectativas, ali eu senti que o que estava propondo fazia sentido, e, nesse processo, mais ou menos seis pessoas dessas turmas se identificaram com a nossa proposta e entraram para o coletivo.
Dentro dessas ações nas escolas, a gente sempre propôs algo artístico, e a forma como as turmas respondiam aos nossos encontros deixava as funcionárias sem acreditar. A sala mais bagunceira se organizava de forma tranquila na nossa presença, isso me faz pensar sobre a importância da arte na educação e no adoecimento dos alunos, dos professores e dos diretores, sobretudo da rede de ensino pública, que era onde a gente atuava, dentro desse método de conhecimento militarizado que exigem que seja aplicado.
Eu sou filha de professora de escola pública, estudei a maior parte da minha vida em escola pública, e sempre foi um ambiente muito complicado para mim. Sentia falta de mais integração entre os alunos que ocupavam aquele espaço, de liberdade para que pudéssemos nos expressar, conversar, apresentar nossas ideias.
Teve uma época na escola em que no intervalo propusemos uma caixa de som com cabo para ligar no celular, no violão e na guitarra, para se apresentar, confraternizar e se sentir perten- cente naquele espaço, já que na sala de aula isso parecia impossível. Mas eu acredito que seja possível sim; depende da abertura dos educadores, de a direção permitir que essas coisas aconteçam. É possível usar música nas aulas, desenhos, rodas de diálogo em que os alunos possam falar, atividades externas, entre outras ações que tornariam o ambiente mais acolhedor para todos. Um dos projetos que pretendo desenvolver na cidade é justamente trazer os alunos e os funcionários para grafitar os muros das escolas que ocupam, para proporcionar essa sensação de pertencimento por meio da linguagem da arte.
Tenho sempre como referência de arte-educadoras pessoas próximas. Vou citar algumas pessoas aqui do interior que forma- ram, nesse período de 2015 e 2016. Uma delas é Ivonete Alves, pesquisadora negra que atua na periferia de Presidente Prudente; Ribas Dantas, também da mesma cidade, professor, artista e pesquisador da cultura popular; Camila Peral, artista e professora circense, pesquisadora da cultura popular.
Fazíamos ações no Ensino Fundamental e no Ensino Médio. Com o Fundamental, sempre rolava recreação, para a qual levávamos bambolês, cordas, tintas para fazer pintura facial, exposição de fotografias. Esta foi construída em virtude de uma oficina que ministrei pela Poiesis, em que debatemos diversos temas, como machismo, racismo, LGBTfobia etc., e, a partir de uma escrita coletiva com os adolescentes, pensamos no ensaio fotográfico. Levávamos as fotografias e poesias para que a crianças pudessem ver, ler; essa era uma ação que mexia comigo também, porque gerava muitos questionamentos das crianças em relação à forma como me vestia, sobre meu gênero, mas era sempre algo muito tranquilo de ser conversado. Vou dar um exemplo:
Criança: “Tia, por que você está usando vestido? Eu não sabia que homem pode usar vestido.” Vulcanica: “Mas eu não sou homem. Eu uso vestido porque acho bonito, mas, independente de ser homem ou não, qualquer pessoa pode usar a roupa que quiser. Criança: “Aaaaaah, não acredito! Só meu pai que não está na moda?”Vulcanica: “Como seu pai se veste?”Criança: “De terno e gravata.” Esse diálogo foi um dos que marcaram e eram sempre nesse tom:Criança: “Você é homem ou mulher?” Vulcanica: “Travesti.” Criança: “Ah, tá bom.”E a criança voltava a brincar, correr.
› Oficina de máscaras, Escola Estadual Alfredo Westin Junior, 2015. Foto: Acervo pessoal
Nas atividades de pintura facial também era um momento em que eu ficava observando. Os meninos não queriam passar tinta na boca, ficava um mandando o outro passar durante uns 20 minutos, mas, depois que um se pintava, todo mundo queria. A nossa intenção ali era dar às crianças liberdade para que se expressassem como quisessem. As noções de gênero, o que definimos sobre “o que é de homem/o que é de mulher”, somos nós, pessoas adultas, que temos essa demarcação. As crianças precisam ser livres para explorar, e isso não vai torná-las mais ou menos cis, mais ou menos heterossexuais.
Atuamos nas escolas de fevereiro a outubro de 2015, porém as escolas e a prefeitura começaram a não permitir mais a nossa presença nesse espaço do saber, provavelmente pela devolutiva dos pais ou talvez pela própria mente fechada dos gestores públicos.
Eu me lembro de uma vez em que alguns adolescentes do Ensino Médio me procuraram porque estavam sofrendo LGBTfobia e racismo. Fui dialogar com a diretora, e ela me agradeceu por ter ido até lá e disse que não sabia o que fazer. Com a sua autorização, chamei dois coletivos de Presidente Prudente, cidade vizinha, um era o Somos, coletivo LGBTQIAPN+, e o outro
era o Coletivo Mãos Negras, para que trouxessem o debate para os alunos e os professores por meio da arte, falando sobre ancestralidade, trazendo música, capoeira, para que o debate acontecesse de forma que os alunos tivessem participação ativa.
Um professor homem, branco e conservador deu a entender que chegaríamos à escola de forma muito agressiva para falar com os alunos, embora já tivéssemos atuado nessa mesma escola diversas vezes, e sabiam que nossa metodologia faz uso das artes visuais, das sonoras e do corpo para abrir o diálogo. Por fim, a diretoria não permitiu que acontecessem as ações por medo da reação dos pais.
› A Ota Djno
II Festival das insurgencias, 2023.
Foto: Augusto de Souza
Mas nem por isso desistimos. Chamei os adolescentes que me procuraram, e fizemos cartazes que levaram para a escola e prenderam pelos corredores, fizeram fotos e colocaram nas redes sociais, e o que acho mais importante: receberam acolhimento de diversos alunos que não sabiam o que estava acontecendo.
Nesse processo de anos fomentando com o Coletivo K-iá, muitas coisas bonitas aconteceram, pela troca com a juventude sobretudo. Produzimos várias batalhas de rima, trazendo artistas das cidades vizi- nhas, incentivando pessoas de Presidente Bernardes a começarem a batalhar, fizemos várias oficinas, de bambolê, slackline, colagem, DJ, dança afro, várias rodas de conversa sobre feminismo, questões LGBTIAPN+, racialidade etc. Diversos espetáculos de circo e dança, e nosso carro-chefe eram os festivais e festas. Sempre buscamos ter diversidade sonora, já que em Bernardes 100% dos eventos são de música e cultura sertaneja, o que era e ainda é um problema para nós do coletivo.
Sempre precisamos sair da cidade para encontrar algum evento que nos contemple, e isso acaba sufocando os próprios artistas que fogem desse ritmo/cultura. Não conseguem se apresentar nos eventos da cidade, já que não existem políticas públicas com focadas nisso com a desculpa de que não existe demanda. Nos nossos eventos sempre tocávamos funk, rap, rock, coco, MPB, blues etc., ritmos que eram difíceis de acessar ali. Era o momento em que conseguíamos colocar pessoas de mundos diferentes para socializar em paz, visto que nos nossos eventos nunca saiu briga, o que é bem comum em outros eventos da cidade. Era também o momento de as pessoas assistirem a performances a que não estavam habituadas, assim como a exposições de fotografias e poesias que instalávamos no local da festa, fora a estética do lugar em si que construímos, sempre utilizando materiais recicláveis para construção.
Lembro-me de uma vez em que um dos integrantes do coletivo teve problemas com a avó que era LGBTfóbica e o expulsou de casa. O conselho tutelar me chamou para conversar porque, segundo eles, ele havia expressado que queria ser artista, o que era um absurdo, pois, segundo a conselheira, ninguém vive de arte, já que ela mesma era cantora, mas tinha de ter outro emprego para viver. Ela me disse que eu tinha espírito de liderança e tinha de canalizar isso para fazer algo bom.
Em 2016, alugamos uma casa para a nossa sede, mas infelizmente esteve apenas três meses em funcionamento, visto que a polícia começou a mapear quem frequentava nossos eventos e ia à casa das pessoas falar ao pai, à mãe e aos avós que não permitissem mais. Nesse período, a prefeitura extinguiu a Secretaria de Cultura, que só realizava eventos como rodeio, show sertanejo e nunca nos ajudou.
Nessa, quem adoeceu foi a gente.O coletivo acabou, mas a luta jamais!
Hoje eu sigo fazendo meu trabalho de arte em Bernardes, porém agora com dinheiro arrecada- do por meio de editais e fazendo o serviço que a prefeitura não faz: pagar os artistas locais.
O I Festival das Insurgências foi realizado em 2021, pelo Edital Orgulho dos Amigos da Arte; e o II Festival das Insurgências em 2023, pelo ProAC; e está para acontecer o III Festival das Insurgências, pela Lei Aldir Blanc. Em 2021, também fiz a circulação do meu espetáculo solo de circo Tarântula Transita, realizado pelo ProAC; e neste ano de 2024, realizamos um mural intitulado Poder a todos nós, pela Lei Paulo Gustavo.
Ao contrário do que a conselheira tutelar me disse, eu vivo de arte, inclusive sou a primeira travesti do Brasil a ter um trabalho comprado por um museu*.
O festival das Insurgências é a ação que mais tenho focado em realizar. Ele surge na pandemia com a demanda de juntar pessoas LGBTIA+ e racializadas para montar um cabaré circense e fazer dinheiro. A partir disso, ele se torna um festival com foco em artistas de Bernardes e região, LGBTIA+, racializados, que fogem da norma. A primeira edição aconteceu on-line, e falamos sobre empreendedorismo no interior, interseção de raça, gênero e deficiência, tivemos oficinas de alongamento, maquiagem artística, espetáculo circense, pocket shows. A segunda edição foi presencial em Bernardes, e tivemos discotecagem com DJs, shows de rock, blues, MPB, pagode, apresentações de dança, circo, teatro, slam, batalha de rima. Na terceira edição que também acontecerá em Bernardes, teremos espetáculo circense nas escolas, uma oficina de palhaçaria, uma oficina de artes visuais, show, discotecagem e performance.
É importante entender que tudo bem se retirar às vezes, mas é preciso sonhar alto e realizar!
Fé nas malucas!
NOTA
* Três vídeos da série documental Desaquenda, que está disponível no canal da Cucetas Produções do YouTube. As obras foram adquiridas pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM). Disponível em: https://www.youtube. com/watch?v=nj4A18P73Gc&list=PLXQe_ iv6pg4OPE8ZNFwxdmEvhAhEGiygu.
Vulcanica Pokaropa
Vulcanica Pokaropa é Travesti formada em Fotografia, mestra em teatro pela Udesc, doutoranda em Artes Cênicas pela Unesp. Sua pesquisa aborda a presença de pessoas Trans nas artes do corpo. Integra a Cia. Fundo Mundo de Circo formada exclusivamente por pessoas Trans e é fundadora do Festival das Insurgências em Presidente Bernardes (SP). Participou de diversas exposições em instituições como Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM_SP), Museu de Arte Contemporânea do Paraná (MAC), Museu da Diversidade de São Paulo, Instituto Tomie Othake, entre outras. Performer, artista visual e produtora cultural.
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