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IVONE & NISE: DERRUBAR MUROS, CONSTRUIR PONTES

Mariana da Matta



Vai e vem no mar as ondas / Que espelho da vida1, canta Dona Ivone Lara de um lado; do outro, Nise da Silveira diz que o inconsciente é como um oceano, de vez em quando conseguimos pescar uma imagem.”2 Estamos em um barco nadando no tempo, do qual podemos testemunhar o encontro dessas duas mulheres-água. Esse elemento fundamental para a vida, que simbolicamente representa as emoções, o mistério e tantas outras forças sutis é também uma metáfora bastante adotada por Ivone e Nise em suas obras. Este texto convida a um passeio por algumas águas, a um mergulho lá onde o rio encontra o mar, onde o consciente honra o inconsciente, e tudo é possibilidade.



Ivone & Nise

Ocupação Ivone & Nise: Um Reencontro.Instalação que integrou o especial Dona Ivone Lara: Axé!

no Sesc Mogi das Cruzes (SP), 2023. Foto: Mariana da Matta



Fruto de um desses mergulhos é Ivone & Nise: Um Reencontro, projeto que celebra a contribuição de ambas para tratamentos humaniza- dos de pessoas com transtornos psiquiátricos e em sofrimento psíquico. Por meio de ações culturais e formativas nas áreas das artes visuais, música e poesia, e com a premissa de apoiar o movimento antimanicomial, o projeto busca trazer luz à atuação de Dona Ivone Lara como enfermeira, assistente social e terapeuta ocupacional, quando atuou na equipe de Nise da Silveira, psiquiatra que implantou ateliês de arte


e redes de afeto como métodos terapêuticos, no Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro (RJ). Idealizado por mim e pela multiartista Pâmella Carmo, Ivone & Nise nasceu como uma ocupação durante o especial Dona Ivone Lara: Axé!, realizado no Sesc Mogi das Cruzes em 2023. No ano seguinte, ampliamos sob o formato de mostra, realizada por meio do PROFAC 3, em diversos locais de Mogi das Cruzes, como Pinacoteca, CAPS II, Ateliê Sementeira, Congada Santa Efigênia, Galpão Arthur Netto e Cursinho Popular Maio de 68.




Mariana da Matta

› Painéis de tecelagem sobre biombo em Ocupação Ivone & Nise: Um Reencontro.Detalhes da instalação que integrou o especial Dona Ivone Lara: Axé! no Sesc Mogi das Cruzes, em São Paulo (SP), 2023.

Foto: Mariana da Matta





Buscamos apresentar a história de Dona Ivone além da música e assim reconhecer seu pioneirismo em práticas de cuidado humanizadas, como a ressocialização de internos e o trabalho terapêutico com música, bem como contribuir para ações de reparação que visam combater preconceitos estruturais. Ao aproximar suas atuações na saúde e na música, percebemos a obra transdisciplinar da artista e apresentamos pontos em comum com as abordagens clínicas de Nise, como o sonho e a liberdade. É a partir desses pontos de encontro que o projeto zarpa.


Tomando perguntas como bússolas para essa navegação, nos indagamos como nós, enquanto artis- tas, podemos imaginar esse encontro e transformá-lo em reencontro — entre Ivone e Nise, entre ambas e o público, entre nós e nosso entorno, entre arte e saúde? De que forma podemos atualizar esse legado? Felizmente diversas iniciativas vêm surgindo para apresentar Dona Ivone na saúde, a exemplo de artigos4 nos quais nossa pesquisa se apoia, mas ainda verificamos poucas referências sobre o tra- balho de Ivone e Nise em conjunto, especificamente. Retomamos então aqueles pontos de encontro — o sonho e a liberdade — para imaginar possibilidades e criar outros afluentes nesse rio que se tece. Diversos fios desenham o corpo do projeto, alguns dos quais apresento a seguir.



Mariana da Matta

› Intervenção artística na roda de samba Sonho e Luta, na Pinacoteca de Mogi das Cruzes, na programação da Mostra Ivone & Nise: Um Reencontro (2024). Foto: Lethicia Galo



Grandes encontros pedem ambientes cuida- dosamente arranjados, e foi a partir disso que pensamos em materializar o reencontro da dupla no formato de uma instalação, que de alguma forma remetesse às suas casas, não como réplica, mas como memória imaginada. Dessa forma, a instalação propõe uma releitura sobre seus legados por meio de obras nossas e de artistas parceiras, bem como objetos, sons, aromas e texturas — símbolos pescados de seus universos — que buscam ancorar sensações nos espaços que percorremos.


Junto à água, outra imagem que flutua conosco é a dos fios e tramas, sob diversas formas. Uma delas emerge entre as obras da instalação: painéis que teci em um biombo, objeto tão usado em hospitais para isolamento, mas que aqui é suporte alternativo para a prática da tecelagem. Proponho a ressignificação como transmutação, bem como manifestação que acha caminho para vir à tona, com ou sem materiais conside- rados ideais — tal como acontecia nos ateliês

do Engenho de Dentro, quando, na ausência de papel devido a sabotagens, pessoas frequentadoras do ateliê pintavam em jornais descartados. Os desenhos que teci no biombo foram inspirados em pinturas de algumas dessas pessoas: Adelina Gomes, Carlos Pertuis, Fernando Diniz e Emygdio de Barros.


A tecelagem me proporciona um barco seguro para atravessar as marés, no qual me sinto conectada com algo muito interno e com algo mais externo, enquanto dou formas às minhas emoções, como recomendava Nise. Semelhante ao movimento mareado de vaivém da navete, que é uma das ferramentas dessa prática, noto a oscilação entre consciente e inconsciente ao dançar os dedos entre os fios da urdidura para criar tramas. Percebo o repertório gestual da tecelagem repleto de metáforas relativas a fenômenos psíquicos, concepção que inspira meu fazer artístico e me leva a “descobrir a beleza do material com que se trabalha”, novamente segundo Nise.




Ivone & Nise

› Vivência Pescar no Inconsciente o Estado do Sonho, junto à instalação na Pinacoteca de Mogi das Cruzes (SP), na programação da Mostra Ivone & Nise: Um Reencontro (2024).

Foto: Lethicia Galo



Apresentamos o tecido também na cenografia e como suporte para colagens, fotografias e um painel com frases pinçadas de composições de Dona Ivone e falas de Nise, selecionadas a partir daqueles pontos de contato — o sonho e a liber- dade —, além de outros assuntos comuns a ambas, como o incentivo à expressão, a poética das águas e o afeto por animais. Lado a lado, as frases sugerem um diálogo imaginado entre a dupla.


A fim de convidar visitantes a navegar nesse reencontro, a instalação apresenta propostas interativas, entre elas uma mesa-ateliê na qual podem desenhar ou escrever cartas sobre o tema sonho, cujas produções ficam expostas em um varal. Nossa intenção é possibilitar que o público vivencie processos de expressão, reflexão e fruição, não apenas como espectador, mas também como sujeito ativo e catalisador de novas possibilidades. As cartas expostas adicionam novas camadas de leitura e interlocução nesse espaço que é renovado com diversas perspectivas acerca do tema. Parte desse material foi editado em uma publicação independente5 pelo selo Sismo.


Ivone & Nise

› Mariana da Matta em visita guiada à instalaçãopara turma do CAPS na Mostra Ivone & Nise: Um Reencontro, na Pinacoteca de Mogi das Cruzes (SP), 2024.Foto: Lethicia Galo



Outro fio que desenha o projeto é a roda de samba Sonho e Luta, que celebra essa manifestação musical como uma complexa tecnologia ancestral e opera como prática coletiva de saúde e resistência. São apresentadas canções de Dona Ivone e outras sambistas, por Pâmella Carmo e convidadas, intercaladas com leituras de Nise e outras referências, além de práticas artísticas ao vivo. Fluindo próximo realizamos também o Sarau Ateliê do Inconsciente com microfone e ateliê abertos ao público. Além da programação cultural, realizamos atividades educativas como oficinas, vivências e rodas de conversa que englobam linguagens como artes visuais, música e teatro, todas em diálogo com a saúde mental.


Ivone & Nise

› Roda de samba Sonho e Luta, na Congada Santa Efigênia, em Mogi das Cruzes (SP), na programação da Mostra Ivone & Nise: Um Reencontro (2024).Foto: Lethicia Galo








Em uma das oficinas, realizada no CAPS6 de Mogi das Cruzes para usuários do serviço, ao combinar práticas musicais e artísticas, tes- temunhamos suas forças como ferramentas de comunicação e acolhimento para pessoas psiquicamente vulneráveis. Algumas revela- ram sua potência criativa expressando cantos, poemas e desenhos complexos, o que provoca tantos debates acerca do estigma da loucura que ainda vive entre nós, assim como sua relação com a arte.


Quem determina os limites e os lugares aceitáveis da fantasia e a quem interessam essas

réguas? No terreno pantanoso onde sensibilidades são patologizadas e contextos sociais são desconsiderados, chamam de loucura uma mulher cantando sozinha na rua ou revoltando-se, por exemplo, mas acham sensato dopar subjetividades e reivindicações em nome de monoculturas mentais. Sensatez não seria compreender alguns sofrimentos psíquicos como resultado de adoecimentos sociais coletivos, em vez de individualizar problemas que são, muitas vezes, estruturais? Talvez seja necessário certo delírio para proteger a psique e remar nas águas turvas que muitas vezes aparecem no caminho de quem navega às margens.




Ivone & Nise

› Pâmella Carmo em visita guiada à instalação para turma do CAPSna Pinacoteca de Mogi das Cruzes (SP), na Mostra Ivone & Nise: Um Reencontro (2024). Foto: Lethicia Galo



O olhar transdisciplinar é uma das velas que conduz nossa embarcação nessas águas tão diversas quanto são os estados psíquicos. Nessa paisagem onde fronteiras são abstratas e os limites entre práticas artísticas e de saúde se borram, identificamos diferentes ilhas, diferentes linguagens sensíveis, e buscamos conectá-las por meio de pontes. Como podemos criar outras ilhas acessíveis em meio ao cotidiano, a fim de que sejam territórios de cuidado?


É importante salientar que nessa visão holística entendemos saúde mental como saúde integral, conceito que engloba diversas condições para o bem-estar, como acesso à arte, à cultura, ao lazer e à socialização, além de, primordialmente, comida, moradia, assistência médica e mobilidade de qualidade, entre outras.


Diante do cotidiano tantas vezes opressor, bem como de um passado manicomial não encerrado completamente, entendemos ações como as nossas como estratégia de resistência à necropolítica e a muros impostos. Quando presenciamos a entrega, a comunhão, a cele- bração e a inspiração em momentos de escuta e acolhimento que o projeto promove, afirma- mos a importância de criar espaços seguros para expressão e fruição artística em diálogo com saúde e a luta antimanicomial.

Como rio que segue apesar de barreiras, encerra- mos a mostra realizada neste ano com o Cortejo pelo Dia Nacional da Luta Antimanicomial, inédito em Mogi das Cruzes, em parceria com a RAPS7 local, unindo usuários da rede e familiares, artistas, público e navegantes do asfalto como um todo. O ato ocupou as ruas centrais de uma das cidades mais antigas de São Paulo e, de alguma forma, contribuiu para enfrentar estruturas retrógradas e oxigenar o movimento antimanicomial. São momentos como esse, com a confluência de inúmeros estados do ser, que novamente borram algumas definições: Afinal, o que é loucura? Qual é a nossa loucura? De volta às bússolas, agora com mapas de ilhas interconectadas à nossa frente, compreendemos que cada novo reencontro atualiza o legado ancestral e constrói pontes entre arte, cultura e saúde mental. Continuaremos o trabalho em 2025, em novos territórios, e seguimos respondendo às nossas indagações enquanto ativamos esse arquipélago e recriamos realidades, ainda que momentaneamente, com novas imagens e práticas que façam sentido para variadas possibilidades de ser e estar no mundo. Sob a força das águas reafirmamos a vida e saudamos nossas matriarcas: Dona Ivone Lara e Nise da Silveira.


Ivone & Nise

› Cortejo pelo Dia Nacional da Luta Antimanicomial, nas ruas docentro de Mogi das Cruzes (SP), no encerramento da Mostra Ivone & Nise: Um Reencontro (2024). Foto: Lethicia Galo




Ivone & Nise

 

NOTAS

1 Trecho de “Espelho da vida”, canção de Dona Ivone Lara em parceria com Délcio Carvalho, lançada no disco de estreia da cantora, Samba Minha Verdade, Samba Minha Raiz (1978).


2 Entrevista com Nise da Silveira por Marcia Guimarães, incluída no livro Nise da Silveira, da Coleção Encontros (Azougue Editorial), organizado por Luiz Carlos Mello.

3 Programa de Fomento à Arte e Cultura da Prefeitura de Mogi das Cruzes.


4 Dona Ivone Lara e terapia ocupacional: devir-negro da história da profissão (https://www.scielo.br/j/cadbto/a/Ws6PtC3jmxhQKs4HPY8p69t/), de Jaime Daniel Leite Junior, Magno Nunes Farias e Sofia Martins; e Serviço Social e Dona Ivone Lara: o lado negro e laico da nossa história profissional (https:// www.scielo.br/j/sssoc/a/ns7LLKhc85GndG4DnmqGDtN/), de Graziela Scheffer.


5 Amostra da publicação disponível em: https://sisssmo.tumblr.com/ post/725018174424301568/ivone-nise-esta-publicação-é-um-desdobramento.


6 Centro de Atenção Psicossocial II – Adulto. 7 Rede de Atenção Psicossocial




 

Mariana da Matta


Mariana da Matta (Mogi das Cruzes, 1993) atua de maneira transdisciplinar entre artes visuais, design gráfico, arte-educação, terapias corporais e arteterapia. É editora do Sismo, selo de publicação independente, e coidealizadora do projeto Ivone & Nise. Sua pesquisa tem como principais temas saúde mental, questões socioambientais e música que se desdobram em arte impressa, têxtil, colagem, fotografia e instalação. É formada em Design Gráfico e Terapia Corporal e pós-graduada em Arteterapia. Realiza projetos culturais e gráficos, cursos, oficinas e curadoria, de forma independente e em parceria com instituições. Produziu Ivone & Nise: Um Reencontro (Sesc Mogi das Cruzes, Pinacoteca de Mogi das Cruzes e outros espaços da cidade). Foi assistente de curadoria na exposição Xilograffiti (Sesc Mogi das Cruzes). Premiada como agente cultural pela Lei Paulo Gustavo (Mogi das Cruzes), participou das exposições Tramas Femininas e A Dor e a Delícia de Ser o que É, além de diversas feiras de publicação independente e arte impressa nacionais e internacionais.

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