Stela Barbieri, um convite ao estado da arte
- Célia Barros
- Jul 30
- 11 min read
— Entrevista por Célia Barros
Stela Barbieri é artista, autora, educadora, compositora e contadora de histórias. Dirige o binäh – espaço de arte que é um lugar de educação e invenção. Foi curadora educacional da Fundação Bienal de São Paulo (de 2009 a 2014), diretorado educativo do Instituto Tomie Ohtake (de 2002 a 2014)e é assessora na área de arte e educação para várias escolas e museus em diferentes estados do país, além de ter publicado diversos materiais educativos para instituições culturais e 30 livros para o público infantojuvenil. Como artista tem exposto regularmente desde os anos 1980 e mais recentemente lançou o seu primeiro álbum musical Canoa.
Como acontece esse cruzamento de interesses ao longo da sua trajetória?
Acho que toda esta história tem a ver com minha infância. A minha trajetória profissional se funde de forma espiralar com as minhas experiências de formação. O binäh, que criei há dez anos junto
com meu companheiro Fernando Vilela, lembra muito o quintal das minhas tias em Araraquara, onde cresci. As três eram solteiras, tinham uma casa muito simples, e uma delas, a tia Lilita, era professora de francês e tinha um guarda-chuva que ela abria para contar histórias. Tia Conceição era uma mulher muito silenciosa, professora de Educação Física. A tia Maria tocava sanfona, dava aulas de arte no quintal e me contava muitas histórias da Bíblia, desde as mais terríveis, de cortar a cabeça, até as mais incríveis, em que o mar se abria. Para mim, aquele lugar era um espaço para viver a imaginação, viver o fantástico. Elas foram, de alguma forma, responsáveis pelas minhas escolhas. Considero que influenciaram o jeito como construí o binäh, assim comoo meu primeiro trabalho de babysitter aos 14 anos ou a minha decisão de estudar Jornalismo em Campinas, porque queria ser escritora, para falar da biografia das pessoas a partir dos acontecimentos mais ordinários.
Com 17 anos, trabalhei como professora estagiária numa escola e, ao mesmo tempo, trabalhava no educativo do Museu de Arte Contemporânea de Campinas, quando comecei meu trabalho como artista, então, desde sempre, circulei entre a produção de arte, o museu e a escola. Sempre contei histórias, vivi uma temporada como contadora de histórias, daí a presença das narrativas dentro
48 dos trabalhos. Em 1987, fui selecionada como educadora na Bienal de São Paulo e alguns anos depois passei no edital de exposições do Centro Cultural São Paulo. Nessa época, eu tinha largado o Jornalismo e estudava Pedagogia na Unicamp, enquanto fazia aulas de arte com Heitor Takahashi, Guto Lacaz, Carlos Fajardo, entre outros. Durante todo esse tempo, as crianças sempre me inspiraram, elas foram minhas maiores mestras. Meu trabalho parte da observação da lida das crianças com as materialidades e da atenção às relações que existem entre os diferentes seres vivos: a força como uma semente brota e como seus movimentos deixam marcas.
Ser mãe me permitiu expandir a minha expressão, desfrutar da presença entre um fazer e outro na cozinha de casa e afinar os processos de desdobrar as ideias pelos desenhos e pelas maquetes. Fiz muitos ateliês com os meus filhos, experimentando várias matérias, com eles cantei, fazíamos teatro. Eu me diverti muito como mãe, embora isso tenha diminuído a minha presença nas artes, que exige relações, acompanhar as aberturas, fazer-se presente. Mas sempre mantive uma constância no meu trabalho, conseguindo fazer meus trabalhos e exposições, mesmo quando atuei como diretora do educativo no Instituto Tomie Ohtake e curadora educacional da Bienal.
Quando encerrei minhas ações na Fundação Bienal e no Instituto Tomie Ohtake, eu estava tão exausta que comentei com o meu companheiro: acho que queria mudar tudo, queria ser cantora, mas agora é tarde... Na verdade, eu sempre compus e cantei, mas ainda não tinha compartilhado essas experiências, o disco Canoa é resultado de uma vida inteira cantando em família, com amigos ou trabalhando.
No Brasil, percebemos historicamente uma linha de pensamento artístico que tem como campo a educação ou a criação de espaços de invenção, integração, liberdade, saúde e vitalidade social. São vários os momentos históricos em que encontramos esse tipo de produção, mas alguns pontos são incontornáveis: os “Domingos da Criação”, propostos pelo curador Frederico Morais, que aconteciam no espaço público do MAM Rio (RJ) na década de 1960, ou a mudança de paradigma de artistas como Lygia Clark e Hélio Oiticica, que criam espaço para uma possibilidade de arte menos hierárquica em relação à produção artística. Situo o seu trabalho claramente nessa linha de pensamento e vejo que atualmente muitos artistas entendem a sua prática a partir da criação de relações, em que a figura do artista “como o grande criador” se desvanece, para ser um agente que provoca o acontecimento.

Como você entende essa fusão entre o gesto artístico e a ação educativa?
Me sinto parte desta linhagem de artistas, educadores, propositores de participação de diferentes públicos, de obras que se constroem na relação. As ações educativas que faço,
sinto que também são convites ao estado da arte, tanto quanto uma obra de arte.
Quando olho para os diferentes tipos de ação presentes na minha vida, acho que tem uma coisa comum que são os processos, desde estudar junto com a equipe da Bienal toda sexta-feira, em reuniões que envolviam questões de produção, até partilhas sobre estudos das percepções das obras de arte e ações poéticas. Percebo que sempre estou neste estado de arte – estado de ateliê – quando estou arrumando uma mesa, preparando um jantar para um monte de gente, são sempre processos. Quando nos deitamos no sofá com os filhos para conversar ou as trocas com nossos cônjuges. A mãe que é velhinha e precisa só de nossa disponibilidade para conversar e estar junto. Sinto que estou sempre me preparando. Preparando as aulas, preparando as obras de arte, preparando ateliês. Preparando para. Para fazer com, preparando para as pessoas, para fazer com elas. E acredito que isso não é diferente de um agricultor, de uma pessoa que lida com a terra que prepara e vive os processos do plantio e acompanha o desdobrar do broto, os florescimentos e as frutificações.
É assim que me aproximo de ideias, de projetos artísticos. Desenho, faço maquetes, me aproximo aos poucos das configurações que aquilo vai tendo. Algumas vezes, sinto uma eletricidade de começar um trabalho e, ao mesmo tempo, um desconforto por não estar ainda configurado. Um desassossego. Isso acontece quando vou me encontrar com grupos de crianças, mesmo tendo tanta experiência. Sempre surge uma certa timidez no começo, uma aproximação aos poucos. Não é que eu chego chegando, é aos poucos que vou conseguindo criar essa atmosfera junto. Convivendo, criamos intimidade entre pessoas e com outras espécies, com as ideias e com as materialidades. É processual e vital.

Em 2013 você realizou a exposição Circuito de narrativas líquidas na Central Galeria de Artes, em que o público era convidado a interagir de forma contemplativa na exposição. Poderíamos dizer que esse momento deu início ao projeto Lugares, que também tem a ver com essa questão do compartilhar processos e aconteceu em várias unidades do Sesc (São Carlos, Bauru e Osasco, Santana, Belenzinho, Bom Retiro) nos anos seguintes? É aqui que surge a ideia de obra-oficina?
Para mim, os universos da arte e da educação têm muitas coisas em comum. Preparar aulas tem a ver com fazer arte. Minha intenção foi juntar esses dois vetores e também outros campos
que me interessam, as narrativas, os livros, a música, a relação com as outras naturezas.
Para a exposição na Central Galeria, me propus a conversar com as pessoas durante a montagem da exposição, por isso desenhei aquelas cadeiras de balanço, para que as pessoas pudessem ficar no espaço se balançando e olhando os desenhos. Foi uma exposição em que partilhei pela primeira vez todo o processo de elaboração de uma instalação, que geralmente fica invisível para quem visita as exposições. Foi um momento de virada no meu trabalho como artista e educadora, fiquei 15 dias montando a exposição e, durante esse tempo, tive várias conversas com outros artistas, educadores, psicólogos e curadores. Depois da exposição aberta, fizemos muitos encontros com crianças, artistas, educadores e outros visitantes. A ideia de estar junto em uma exposição, de ficar um tempo nela.
As “obras-oficinas” nascem dessa experiência. Uma obra de arte e, ao mesmo tempo, uma oficina de trabalho. Minha vontade inicial era que os Lugares fossem feitos dentro da escola pública, mas a oportunidade de realizar no Sesc foi um privilégio, pela possibilidade de concretização da obra e a diversidade de públicos.

Poderíamos dizer que em Só no nós acontece um aprofundamento da obra-oficina, como uma reverberação artística dos ateliês que você oferece no binäh e em outros espaços?
As obras-oficinas são diálogos com os públicos como dispositivos de processos de invenção, espaços que se transformam com a ação dos públicos, contextos polissensoriais compartilhados e negociados que mobilizam os participantes a se colocarem em jogo. Olhando para o projeto Lugares, penso que eles me trouxeram a percepção de que é possível propor materiais ainda mais embrionários, com diferentes densidades e volumes das matérias. Matérias em estado mais cru, com menos processos de manufatura. Materiais e modos de organizar o espaço que gerem convites, experiências, experimentações de diferentes escalas, que mobilizem o corpo todo ou a ponta do dedos, nas investigações, assim como faço nas propostas de ateliê no binäh espaço de arte, que gerem caminhos de construção ou transformação nada lineares.
Na exposição Só no nós, essa mobilização, de um modo peculiar, aconteceu, com a convocação de um corpo ativado pela matéria, gerando diferentes ritmos,
e outras expressões se deram. Essa exposição tinha duas instalações, uma em cada sala do Centro Cultural Britânico, o Habitar em com tato, reunia um desenho tridimensional na parede no qual os públicos podiam acessar materiais como escada, peneiras, pedaços de madeira, calota de lambreta, buchas, tecidos; tinha como proposta a construção de desenhos, abrigos, ninhos, criando territórios e habitando o espaço em tablados irregulares.
A outra instalação era o Pela gota, uma obra-oficina que convidava a preparar líquidos numa alquimia de sabores: chás e águas cheirosas que podiam ser bebidos, nas cadeiras de balanço foram colocados lava-pés de sementes. Acontecia um desdobramento em que o chá preparado gerava a pintura que se formava por conta-gotas por meio de funis com longos tubos que pintavam o algodão com desenhos e cores. Essa exposição tinha materialidades distintas que, ao serem ativadas pela vizinhança e pelos entrelaçamentos entre elas e seus diferentes universos, revelavam camadas de sua constituição e forma, em agenciamentos que surpreendiam. Só no nós trouxe para
os públicos, e para mim mesma, deslocamentos, estranhamentos e estados da arte imprevisíveis.


Os projetos Lugares, Só no nós ou Mirantes me lembram muito de coisas que vi acontecer no binäh,onde vocês criam um ambiente que convida a uma contemplação ativa, espaços que abrigam uma pausa, um deslocamento dos afazeres cotidianos.
As aulas que preparamos no binäh são exatamente isto, espaços de convites à experimentação, à invenção, pausa de uma ação mecânica para iniciar outra com atenção. A invenção também está muito presente no cotidiano, e usamos isso em muitas das nossas ações.
No binäh, cada pessoa da equipe tem um jeito de arrumar um contexto para receber as pessoas, um modo singular de convidar para nossas oficinas. Alguns são mais caóticos, outros já são detalhistas ou até inusitados, criando vizinhanças insólitas entre os materiais, e isso tem a ver com as escolhas que cada um faz, com sua personalidade, suas intenções e com as relações que inventa entre as materialidades e as perguntas/investigações.
Mas tenho pensado muito no direito ao sossego, à pausa (título da minha exposição que abriu em março de 2025). Talvez isso, no meu dia a dia, seja das coisas que mais sinto falta. De ficar horas balançando numa cadeira de balanço, numa rede, olhando para fora e para dentro ao mesmo tempo.
Muitas aulas, projetos de educação e de arte surgem do balançar, o balanço dinamiza em mim imagens, histórias e visões desde a minha infância. Uma pausa como espaço de invenção. O estado de ateliê também pode ser essa pausa.

Como surge o Mirantes? Apesar de ter muitas ferramentas das experiências anteriores, a instalação parece nos provocar noutra direção.
Na Chapada dos Guimarães existe um mirante muito bonito, de onde você enxerga um lindo vale. Depois de ver a paisagem a partir do mirante, eu e Fernando ficamos observando as pessoas olhando a vista. Como é que as pessoas olham? Às vezes, elas só fotografam e vão embora, outras ficam profundamente em contato com aquela paisagem. Tem gente que embala numa conversa com a pessoa que está do lado e fica horas ali olhando e conversando. Fiquei vendo os vários jeitos de olhar e me perguntei como poderia fazer mirantes para olhar para dentro também.
Por exemplo, nas nossas casas, quando a gente se aninha nos cobertores. Como nos colocamos em estado de miração? Uma questão que me pegou foi a escala necessária: como seria o mirante para uma formiga ou para uma girafa? Quais são as diferenças de um mirante para uma criança pequena ou para uma pessoa grande? Pensar nesses vários jeitos de olhar para o mundo. Uma das músicas do meu disco chama “Eu vi o mundo”, e fala dos vários modos de enxergar o mundo... em cima de uma montanha, eu vi o mundo embaixo da Cachoeira, eu vi o mundo. Como olhamos para as várias expressões do mundo. Todas essas expressões são o mundo.
Fiz maquetes e desenhos para me aproximar dessa ideia, cadernos e cadernos. Existe uma miragem nessa miração. Que é também o modo como os povos originários falam de quando ficam sob a força da ayahuasca. A miração é um jeito de olhar para dentro. De você enxergar as imagens daquela planta de poder. Que te convoca.

Em Banho de canto, você explora o som de uma forma plástica, em que a interação coletiva é necessária para a obra acontecer. Esse projeto tema peculiaridade de colocar o som como descoberta e como evocação do repertório estético de cada um. O que provocou esse trabalho?
Esse desejo de cantar com os outros. Esse foi um primeiro um movimento para cantar junto com outras pessoas, sem ser com meus filhos, meu companheiro, ou amigas muito próximas. Eu tinha muita vontade de ser cantora, mas já estava com 50 e poucos anos e pensava como é que eu vou iniciar uma carreira de cantora nessa altura da vida?
O Banho de canto gera essa oportunidade para poder cantar com os outros. Desenhei a estrutura e fui pendurando instrumentos musicais e objetos que eu já tinha em volta da estrutura: tambores, chocalhos, recorecos, maracás, apitos, sinos, bacias, entre outras coisas que eu tinha no ateliê.
Divulguei na internet, e vinham pessoas, que muitas vezes eu não conhecia, tomar banho de canto. Inventamos um ritual em que, primeiro, “banhávamos” as pessoas de vento com leques e, depois, uma pessoa se sentava numa cadeira de balanço dentro do Banho de canto, enquanto as outras cantavam, tocavam e rodavam em torno da estrutura de ferro. Quando acabava a música, outra pessoa se sentava na cadeira para tomar o banho de canto. Desse jeito, a “obra-oficina” vai acontecendo, com músicos e não músicos, com todos que quiserem participar. Uma vez, um amigo me disse que parecia uma sessão de exorcismo. Acredito que, fazendo arte em conjunto, nos limpamos, nos transformamos e nos vitalizamos.

Stela Barbieri
É artista, contadora de histórias, autora e educadora. Dirige o bináh espaço de arte, um lugar de educação e invenção. Atua no encontro de diversas áreas do conhecimento para além das artes visuais e educação, como a literatura e a música. Como propositora de experiências e processos
de interação entre arte e educação, inventa espaços que convidam à coparticipação. Entendendo a arte como um lugar capaz de gerar novos contatos afetivos com o mundo e entre as pessoas, o trabalho de Stela busca a diversidade – de interesses, discursos, interferências, culturas e linguagens –, subvertendo os limites entre a imagem, a escrita, as histórias a arte e a educação.
Foi curadora do educativo da Bienal de SP por seis anos acompanhando três bienais e duas mostras especiais (2009-14), diretora da Ação Educativa do Instituto Tomie Ohtake (2002-14), foi conselheira da Fundação Calouste Gulbekian, em Portugal, criadora de currículos e assessora de artes de escolas de referência em São Paulo e outras cidades no Brasil. Stela é autora de livros de educação, arte e literatura, trabalho que se desdobra também na arte de contar histórias. Publicou materiais educativos para instituições culturais, livros para professores e 25 livros para o público infanto-juvenil. Realiza exposições espetáculos e ministra cursos de narrações no Brasil e no exterior. Destacam-se as exposições individuais: Abrigo para sonhos e corpos, no CIEMPI, em Jundiaí, 2023; Territórios, na Casa Diálogos, em São Paulo, 2022; Como a água anda?, na Arte Serrinha, em Bragança Paulista, 2020; Mirantes, em várias unidades do Sesc-SP, 2019; Só no nós, no Centro Brasileiro Britânico São Paulo, em São Paulo, 2016. Recentemente participou das exposições coletivas CRIA, no Centro Cultural Fiesp, 2022, em itinerância por diversas cidades; e Alucinações, no Instituto Tomie Othake, em São Paulo, 2018.
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