— Célia Barros
Do que estamos falando quando nos referimos a artes visuais? Da história da arte como narrativa única e linear, propagada e reafirmada de tal forma que, mesmo alterando sistemática e deliberadamente o seu sentido, ganhou coerência nas suas contradições, fortalecendo um mercado elitista e opressor que se legitimou para ditar as regras do que pode ou não ser arte? De infinitos gestos rea- lizados a partir de uma amplitude de impulsos que se concretizam em imensuráveis materializações? Bens materiais ou perecíveis, efêmeros, transitórios? Nas artes visuais, lidamos com uma instabilidade permanente que flutua entre a sobrevalorização ou o descrédito, em que as regras de um mercado de investimento estratégico entendem o patrimônio material (e imaterial) como capital cultural, capaz de intermediar relações de mercado, financeiras e políticas.
O desafio passa por estabelecer pontes entre as diferentes esferas de atuação, mas também por propiciar circuitos paralelos sustentáveis que consigam dialogar com outros mercados e criar outras estórias para as artes.
A revolução atualmente em curso, que reivindica novos agentes no espaço cultural, só terá real valor de mudança se conseguirmos criar também lugares para o acontecimento artístico. Caso contrário, os agentes que agora alcançam o livre transitar pelo espaço hegemônico do capital cultural em breve serão apenas mais uma moeda de troca no jogo da inclusão-exclusão, repetindo aquela velha fórmula, que não se cansa de estar certa, entre oprimidos e opressores.
Reexistir para além dessa dinâmica cansativa que dilui a utopia implica um jogo de imaginação coletivo, em que acreditar em si passa por autorizar o outro não hegemônico a poder ser, envolve compreender e ser consciente do sistema que nos funda, para engendrar outros.
Depende de escolher entre uma estrada que invariavelmente se dirige ao mesmo centro e pegar aquela rodovia que pode levar você a lugares outros.
Nessa perspectiva, Gabriela Leirias apresenta- nos uma experiência que aconteceu em Campinas e abre a temática ARTE POPULAR E ARTE CONTEMPORÂNEA, engendrando novos percursos, jeitos de caminhar e fazer mundo que perpassam a coletividade, mostrando que é possível escapar de certas categorias exauridas para encontrar e reconfigurar caminhos.
Ainda na esteira das complexidades do fazer mundo, Renata Sparapan aborda o caráter processual das figureiras, artistas do barro cru na região do Vale do Paraíba, no seu envolvimento com a cultura caipira e de vínculo com a terra, que subsiste na singeleza e na integração, em oposição à cultura da posse. Com um olhar a partir da prática e da existência, a prosa com Eunice Coppi ajuda-nos a cruzar outras relações oriundas dos processos criativos que as memórias e os desejos fazem pulsar nos dedos.
Como bom artista-etc.* , Fabrício Lopez faz da xilogravura sua linguagem mestra que norteia seus fazeres, relata-nos sua trajetória entre as vivências em Santos, cidade onde nasceu e mantém ateliê, e a capital, onde desenvolveu parte considerável da sua trajetória como artista, educador e articulador de movimentos. Retomando o fio orgânico, da ancestralidade feminina, Mariana Vilela recupera o gesto lento de um tempo que contradiz a velocidade produtiva (e destrutiva) nos convidar para “uma cena-instalação estranha e ao mesmo tempo familiar” em que o fiar é colocado como cena primordial para uma reconexão com a vida.
O pesquisador Artur Lins nos conduz pelas tramas de uma história que envolve colecionismo e sistemas das artes populares, ajudando-nos a discernir a origem e o significado dos termos que separam nichos específicos da produção artística. Em contrapartida, Margarete Chiarella, que acompanhou a produção de várias edições da Bienal Naïfs do Brasil, conta-nos aqueles detalhes que costumam ficar invisíveis, mas são gestos fundamentais da feitura cultural.
Ponderar as imagens que nos circundam e seus códigos inerentes ou flutuantes, para pensar o que é arte, o que é popular e contemporâneo. No universo da fotografia vernacular, repleta de representações cuja autoria se perdeu e por vezes também o contexto em que se deu o clique, deixando as imagens órfãs, Estefania Gavina cria o arquivo ACHO, engendrando um sistema de acolhimento, adoção e criação de sentidos em uma sociedade de profusão e descarte imagético. Rodrigo Seles banha-se nas águas suculentas da representação, absorvendo a dissociação de sentidos dos diversos extratos de formação simbólica. As imagens, suas origens, seus significados e suas transmutações são também a base subversiva do trabalho de Daiana Terra.
Finalmente, no texto Para que serve uma exposição? parto da minha experiência como artista, curadora e educadora para ressaltar o ato expositivo como lugar de autorização, legitimação e agenciamento dos mais diversos universos culturais, mas também de oscilação e trânsito entre os agentes culturais, entendendo o público como parte desse acontecimento.
NOTA
*A definição de “Artista-etc" foi criada pelo artista, escritor, crítico e curador Ricardo Basbaum.
BASBAUM, Ricardo. Manual do artista-etc. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013.
Comments