— Célia Barros
Se a pandemia do covid-19 foi uma experiência trágica independente do lugar onde nos encontrávamos, para as mulheres representou também o desmoronar de uma situação que se sustentava nas aparências de uma sociedade capitalista: sem a possibilidade de contratar profissionais ou acessar os serviços públicos que garantiam as diversas tarefas de cuidado, educação ou tempos livres, restou a elas o comprometimento com os afazeres domésticos e sua avalanche de trabalho infinito. São José dos Campos, interior do estado de São Paulo, a 100 km da capital paulista, foi uma das mais afetadas pelo machismo e pelas estruturas do patriarcado, num estado que registrou aumento de 40% nos índices de violência contra as mulheres durante o período de isolamento social imposto pela pandemia.
Contudo, uma das brechas que a situação pandêmica possibilitou foi o hiato espaçotemporal simultâneo que viabilizou que cerca de 50 mulheres profissionais das diversas áreas da cultura em São José dos Campos tivessem tempo para conversar virtualmente e trocar sobre abusos sofridos no âmbito da sua profissão 1.
O GT Mulheres da Cultura de São José dos Campos reúne dezenas de mulheres que atuam em diversas linguagens artísticas; dentre elas teatro, música, artes visuais, fotografia, poesia, cultura popular, circo, dança, entre outras. Tem o objetivo de debater políticas de equidade de gênero e realizar ações para o fortalecimento da presença e do trabalho da mulher pelo viés feminista, antirracista e anti-homofóbico na arte e na cultura da cidade e da região.
Nas primeiras reflexões, ainda em quarentena, o GT focou no imprescindível apoio às mulheres abusadas psicológica e/ou sexualmente 2,na defesa da igualdade de gênero no universo artístico 3, na diversidade de idades, cores, vertentes artísticas, experiências e conhecimentos 4.
Desde a sua formação em 2020, o grupo marcou presença em diversas ações culturais e artísticas, tais como: 1o e 2o Festival Mulheres da Cultura, realizado com apoio do Fundo Municipal de Cultura de São José dos Campos (2020-2021); os Videomanifestos Sal do Sul 5 e Multifacetada 6 (2020-2021), este último premiado pela Lei Paulo Gustavo (2023); Rede de afeto feminino – de ontem em diante 7, ciclo de encontros virtuais com a Poiesis – Oficinas Culturais do Estado de São Paulo (2021-2022); 3a edição do Encontro Internacional Nós Tantas Outras, promovido pelo Sesc São Paulo (2022); 1a Semana da Saúde das Mulheres da Cultura, como parte do Dia Internacional da Criatividade, com apoio do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher (SJC) e da Associação Vivas da Silva. Manteve também articulação com o Movimento Atreva-se e o Coletivo de Juristas Feministas, com ações de formação, grupos de estudos e apoio jurídico pontual.
› Oficina de Criação de Avatar, realizada na 3a edição do Encontro Internacional Nós Tantas Outras, do Sesc São Paulo, em 2022.
As principais dificuldades enfrentadas pelo coletivo são resultantes dos inúmeros relatos de integrantes do grupo em que descrevem situações de silenciamento e agressões morais provindas de homens da cultura de nossa região.
Devido ao fato de que as cerca de 80 mulheres que atualmente participam do grupo de WhatsApp vivem e trabalham em diferentes regiões da cidade ou outras cidades próximas, muitas são mães ou cuidadoras de familiares e, em sua maioria, são pessoas em constante vulnerabilidade financeira, conciliando diversos trabalhos para sobreviver, é muito desafiador abrir espaço na agenda para encontros presenciais, apesar de todas sentirmos que essa é uma ferramenta necessária para o fortalecimento do grupo. Sem liderança definida, o conjunto de ações promovidas pelo GT Mulheres da Cultura SJC ao longo desses quatros anos tornou-se possível graças à mobilização daquelas que, em determinado tempo, dispõem das condições necessárias para se envolverem ativamente em um projeto específico. Vale salientar que nem sempre foram as mesmas, apesar de algumas serem mais recorrentes que outras. Esta que vos escreve foi diretamente responsável pela organização de apenas uma das ações citadas, tendo participado, com maior ou menor assiduidade, das demais atividades.
Uma das características mais fortes do grupo é a oportunidade de atuação profissional em rede, seja articulando-se entre si para realizar projetos, debatendo condições de trabalho e remuneração junto às instituições, garantindo indicações de outras mulheres profissionais para contratações ou esclarecendo dúvidas sobre editais e outras situações profissionais.
É também um espaço para o desabafo. No campo afetivo, o grupo mantém, desde o início, o GT de Acolhimento Eva Sielawa 8, com mulheres que podem ou não fazer parte da articulação do GT Mulheres da Cultura. É um espaço para a escuta que nem sempre é possível no grupo maior, no qual as diferenças e as fragilidades sociais acabam se impondo e desestabilizando o diálogo.Um dilema que o grupo ainda precisa enfrentar tem sido limitar a abertura a outras mulheres.
Apesar de entender a importância de estarmos juntas para identificar as violências estruturais e nos reconhecer como profissionais, sofremos múltiplas agressões, como vazamentos de informações, ingerências, intrigas, ameaças e diversos ataques que procuram desestabilizar a confiança entre as mulheres do grupo, desvalorizar sua força e sua presença no movimento cultural da cidade, ridicularizar, agredir ou menosprezar a atuação profissional das mulheres que atuam no GT.
Por esse motivo, o grupo tem limitado a entrada de novas participantes, procurando fortalecer a sintonia e o consenso das atuais integrantes e adiando constantemente uma abertura a um diálogo mais amplo que possa abranger outras mulheres atuantes ou em fase de profissionalização.Essa limitação é hoje fonte de frustração por uma parte considerável do grupo, já que a reflexão conjunta nos permitiu entender que o fortalecimento da presença e a valorização do trabalho da mulher na cultura passam por uma permanente desconstrução e reconstrução coletiva. Essa dificuldade nos conduziu ao desejo de criar ações de formação contínua e realizar o Fórum Mulheres da Cultura como forma de ampliar o debate, que continua sendo um sonho no horizonte.
No 3o Encontro do GT Mulheres da Cultura SJC realizado em março deste ano, várias ações foram delineadas em conjunto, novamente com a colaboração do Movimento Atreva-se, no intuito de organizar as urgências de cada estratégia.
› 3o Encontro GT Mulheres da Cultura SJC, realizado na Academia Cordão de Ouro Mestre Tinta Forte, em março de 2024.
Se o trabalho cultural já tem uma fragilidade inerente à precarização da economia da cultura, com remunerações baixas, contratação instável e descrédito social, ser uma trabalhadora da cultura implica uma vulnerabilidade maior, que começa na infância ou na adolescência (pela falta de representatividade de mulheres em lugares de relevância e responsabilidade, sendo eternamente desterradas ao lugar de musa); que continua durante os estágios de formação (ao termos nossa experiência, nossos conhecimentos, nossa perspectiva e nossa vivência constantemente desvalorizados)que persiste como profissionais (sempre relegadas a segundo plano, mal remuneradas e conduzidas à competição pelas poucas oportunidades, ratificadas na invisibilidade a que a história patriarcal nos relega).
› Oficina Corpo Presente, realizada no 2o Festival Mulheres da Cultura, em 2021.
› Oficina Aldeia das Deusas, realizada no 2o Festival Mulheres da Cultura, em 2021.
Nesse sentido, o grupo de trabalho tem se revelado uma ferramenta de apoio e acolhimento, pautando discussões que seguem em aberto – mas para as quais precisamos estar atentas e reencontrar estratégias –, fortalecendo a rede de profissionais, priorizando mulheres nas fichas técnicas dos projetos e promovendo o discernimento, o compartilhamento e o acolhimento de abusos sofridos, assim como os mecanismos para se defender, além de canalizar processos criativos que possam dar expressão a tudo isso, promovendo a saúde, a troca, o empoderamento e a emancipação das mulheres da cultura.
Notas
SOUZA, Aline. GT Mulheres da Cultura: pedagogia feminista em São José dos Campos. Universidade de São Paulo, Escola de Comunicações e Artes, Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação. São Paulo, 2023. In: https://celacc.eca.usp.br/sites/default/files/media/tcc/2023/08/aline_de_cassia_silva_souza_-_gt_mulheres_da_cultura_pedagogia_feminista_em_sao_jose_dos_campos.pdf
TROIA, Elaine. Meu legado. https://zenodo.org/records/8087280
https://youtube.com/playlist?list=PLZi69D8xsxc-CIIuhUPVYhcZKfCLl6A8L
Tributo a Eva Sielawa, atriz, cantora, diretora e professora do teatro, uma das cofundadoras do GT Mulheres da Cultura SJC, cocriadora e responsável pelo GT de Acolhimento, que faleceu em 29 de abril de 2023.
Célia Barros
Mestra em Produções Artísticas e Investigação pela Universitat de Barcelona, desenvolve projetos de exposições em que articula ações de curadoria e mediação em arte contemporânea. Investiga os deslocamentos entre o artesanal e a arte contemporânea e as relações entre arte e saúde em processos expositivos. Destacam-se os projetos Encontros Êxtimos (2024-2023), Pausa Onírica (2020-2021)e Latente Incomum (2021); e as exposições Encontros Êxtimos, na Casa Contemporânea, em São Paulo (2024), e na Casa na Escada Colorida, no Rio de Janeiro (2023); Ocupação Xilográfica, no Sesc Birigui; Alento, no Sesc São José dos Campos (2022); Xilograficamente, na Galeria de Artes Visuais – Sesi (2021); 14o Salão Nacional de Arte de Itajaí (2018); pedras são preciosas, em Botucatu - SP, selecionado para o edital do ProAC (2016); e Curadoria Coletiva, com apoio do SISEM-SP (2014).
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