Editorial — no 4 | Arte e saúde
- Célia Barros
- Dec 11, 2024
- 6 min read
— Célia Barros e Gabriela Leirias

Um ano e quatro edições, mais de 40 artistas/pesquisadores/educadores publicados abordando projetos que envolvem 20 cidades de diferentes regiões do estado de São Paulo permitiu-nos conhecer os contextos para essas produções e encontrar a multiplicidade do pensamento artístico e a não linearidade pulsante das histórias das artes.
A primeira edição “Mulheres nas Artes Visuais” marcou o começo da Revista Latente, indo ao encontro de vozes variadas que rompem com o sistema de invisibilidade. Enquanto preparávamos os textos e discutíamos com as convidadas os conteúdos, vivíamos mais um capítulo do acirramento da disputa política pelo con- trole do nosso corpo, limitando o acesso a uma saúde reprodutiva digna e livre, ocupando sistematicamente os espaços que deveriam nos defender e proteger, nos desqualificando e nos matando física, psicológica e criativamente*. Esses ataques comprovam a urgência de nos mantermos atentas, fortes e articuladas, construindo redes de conscientização, acolhimento, reconhecimento e trabalho.
Esta edição marca também o entendimento de que a elaboração da história da arte e da reflexão sobre o campo pode ser espiralar e interseccional, tendo o cuidado de a cada edição destacar um tema que continue se desdobrando nos demais números, aquecendo as reflexões continuamente.
É assim que na edição 2 abordamos “Arte popular e Arte contemporânea”, sem tirar o pé de exercitar uma abordagem feminista plural em que os conteúdos pesquisados vão impactar as edições posteriores.
Na terceira edição, “Arte e corpo”, experimenta-mos a potência de uma subjetividade fluída e do movimento dos afetos nas trajetórias individuais. Percebemos que a Latente traz para o primeiro plano a escuta da voz de cada artista, com um caráter experimental que difere de uma narrativa hegemônica construída por vozes autorizadas. Abrimos espaço para uma escrita sem normas acadêmicas, com o compromisso de uma comunicação ampla que dialogue com públicos diversos e a experimentação poética.
Toda essa trajetória apesar de breve foi intensa e se caracterizou pela experimentação, pela pesquisa e pela criação de uma revista singular de artes visuais que prima por uma construção dialogada com as pessoas participantes, sejam as convidadas, sejam as selecionadas por meio das chamadas abertas. Para cada número, abrimos uma chamada aberta, para pessoas que atuam em todo o estado de São Paulo e selecionamos dois ensaios e dois trabalhos poéticos. Assim, ampliamos a pesquisa e o mapeamento, seja em relação aos participantes, seja em relação ao tema, afinal, as inscrições nos provocam outras e novas abordagens sempre ampliando e problematizando concepções preestabelecidas.
Tudo isso contribui para a presente edição, a quarta e última deste ano, em que investigamos as relações entre arte e saúde. Desde a pandemia, o tema ganhou relevância mundial, desdobrando-se em inúmeros projetos e pesquisas. Foi importante reforçar a aposta de olhar para os 644 municípios que compreendem o interior e o litoral do estado de São Paulo. A cada edição, a pesquisa foi se aprofundando, entendendo as relações entre espaços culturais e trajetória de artistas e projetos, fortalecendo a importância de cruzar outros caminhos que nos desviem de uma energia centrífuga. Multiplicar os centros e chegar até Presidente Bernardes, no Oeste Paulista, próximo à fronteira entre o Paraná e o Mato Grosso do Sul, onde Vulcanica Pokaropa luta pelo direito à existência. No seu texto visualizamos essa cidade de 15 mil habitantes forçados a uma hegemonia cultural, profissional, religiosa e subjetiva. Quinze mil pessoas orientadas por políticas públicas que delimitam o que é cultura e cerceiam tradições e novas emergências. Vulcanica, artista que transiciona e que transita. Estar em trânsito, assim como a maioria dos artistas e dos pesquisadores que participam da Revista Latente, é também se colocar em movimento, procurar os interlocutores, achar as brechas, os financiamentos, os artifícios e a coragem para defender a liberdade de ser.
Desde Mauá, como “uma grande viagem que não tem chegada, apenas caminhos cansados, mas esperançosos e com propósito”, Maria João retrata os corpos negros e periféricos que atravessam a cidade, a vida de quem não pôde parar mesmo durante a pandemia. Seu olhar pausa nos detalhes dos braços colgantes, das bolsas penduradas, dos corpos sentados dos transportes públicos e das táticas e divertimentos cotidianos.
Viver fora das capitais implica deslocamento para ativar a potência das relações. A fluidez virtual que facilita a troca e os encontros também nos adoece quando fomenta a escassez da presença. Entre Jacareí (SP), São João del-Rei (MG) e várias outras cidades, Lucimélia Romão reúne recur- sos para denunciar a violência histórica contra pessoas negras e as atualiza ao tornar visível o genocídio empreendido pela força policial. Suas performances e instalações congregam uma comunidade que parte do seio da sua família e se articula em diferentes associações que desestruturam os pilares da violência racista.
No município de Avaí (SP), a aldeia Kopenoti centraliza algumas das ações que Irineu Nje’a Terena desenvolve em sua pesquisa em torno da ancestralidade Terena. Formado em História com especialização em Antropologia, Irineu encontra na arte da cerâmica o fio restaurador de um processo histórico, de encontro consigo e das dimensões interconectadas da espiritualidade, da saúde e da arte.
Na esteira de uma vida institucionalizada que nos adoece forçando-nos a caber nas suas estruturas, Felipe Marcondes da Costa e leo alvim apresentam trabalhos que compõem diferentes faces de uma mesma moeda. Felipe faz uso de certidões, formulários, boletos e carteira de identidade que converte em terreno fértil para a poesia, enquanto o manual de lobotomia de leo é quase um gesto de desistência, mas que ainda articula a negação de se circunscrever a uma vida sem sentido. Numa sociedade capturada pela imagem fugaz de beleza e felicidade, as confabulações entre arte e saúde se apre- sentam como os espaços que restam para as sombras habitarem.
Franco da Rocha (SP) teve seu nome associado ao Complexo Hospitalar do Juquery, uma das maiores e mais antigas colônias psiquiátricas do Brasil de confinamento prisional dos pacientes, que representam a opressão de toda uma sociedade à diferença. A cidade, hoje com aproximadamente 150 mil habitantes, cresceu em torno da instituição, sendo difícil encontrar alguém que não tenha algum tipo de relação pessoal, familiar ou profissional com o antigo hospital psiquiátrico, que fechou suas portas em 2021 com a transferência dos nove últimos pacientes que ali viviam. O que não pode ser esquecido quando o Juquery fecha as portas? é um projeto de Cibele Lucena e Flavia Mielnik que atravessa as relações, as memórias e a elaboração de narrativas da transformação da instituição que acolhe o Museu Osório César desde 1985, com mais de 8 mil obras. Juntas, elaboram imagens a partir de uma escuta sensível daqueles que participaram do fechamento da instituição, e Gabriela Serfaty traz uma linda contribuição ao costurar tantas histórias e experiências passadas ressaltando os pontos de luz e afetos, os tais vaga-lumes, que geram acolhimentos e sanação.
Nise da Silveira é justamente reconhecida como alguém que trouxe novos ares à luta antimanicomial no Brasil instituindo as práticas de ateliê como espaço de saúde e conexão. Na exposição Ivone & Nise: derrubar muros, construir pontes, Mariana da Matta, em parceria com Pâmella Carmo, mostra-nos o trabalho de Nise em colaboração com Dona Ivone Lara, pessoa muito conhecida no contexto cultural, mas não no de saúde mental, apresentando uma gama múltipla de ações artísticas, culturais e educativas que aproxima o universo relacional do momento expositivo.
Em parceria com o Instituto Procomum em Santos, Marina Guzzo cria o projeto Mistura, que se iniciou na pandemia propondo as práticas ecossomáticas e o cuidado como caminho para “responsabilidade, acolhimento e atitude frente aos processos sociais e individuais”. A partir dessa experiência multiespécies entre corpos de mulheres e plantas, inventa dispositivos replicáveis em diferentes contextos.
Na seção DESLOCAMENTOS, Célia Barros desenha um trajeto que atravessa três projetos: Latente incomum, Pausa Onírica e Encontros Êxtimos, que abordam não só o diálogo entre arte e saúde, mas também o desenvolvimento de estratégias para estar em relação e lidar com os processos criativos, gerando trânsitos entre a figura do artista, o público e outros possíveis agentes.
Gabriela Leirias fecha esta edição abordando a saúde na escala do corpo e do corpo da T(t)erra. A partir do projeto Jardinalidades e de pesqui- sas recentes traz para primeiro plano o impacto da crise climática na saúde global e como a arte pode pensar caminhos para outras relações ambientais, sociais, imaginativas e fabular futuros possíveis.
Neste primeiro ano tornou-se evidente que fomentar contextos de produção implica propor desvios concomitantes, e um deles foi a presença de vozes múltiplas na escrita. Incitamos artistas e pesquisadoras a trazerem a experiência e encontrarem um tom que compartilhasse seus sentidos. O resultado foi uma revista que atra- vessa biografias e subjetividades, em que cada pessoa pode experimentar diferentes estratégias de escrita, visualidade e comunicação de seus projetos e suas investigações.
Ao longo de 2024, a Revista Latente manteve a pesquisa contínua, mapeando agentes das artes visuais em todo o estado de São Paulo e provocando aproximações entre diversas regiões e experiências. Consolidando-se, assim, como uma plataforma alternativa de divulgação, de documentação e criação de memória e elaboração crítica a partir das cenas locais.
Longa vida à Revista Latente! Que siga seu ímpeto de conectar, tramar redes e pontes, de tornar manifesto delicadezas e incertezas dos processos de criações artísticas, educativas, culturais. Aspectos que estão nos entres, nas frestas, em possíveis invisibilidades do fazer.
NOTA
* Como é o caso da luta por aborto legal, pela presença de mulheres na política e os assassinatos de Marielle Franco e Julietta Hernandez.