— Fabrício Lopez
MEMÓRIA DA CARNE
Na infância, sair com os amigos para catar siri na praia em dia chuvoso. Antes de chegar ao mar, pegávamos tripa de galinha na avícola para servir de isca no puçá. A obrigação dos mais novos, como eu, era enfiar o braço no tonel cheio de vís- ceras e procurar um punhado delas. Quando não havia nada por lá, era preciso enfiar a mão dentro da galinha recém-abatida e ainda quente da vida passada, arrancando tudo o mais rápido possí- vel antes que o ar acabasse e os pulmões recebessem o cheiro do lugar. Hoje, entendo como a minha primeira iniciação artística. Livrar a mão de qualquer pudor material e impregnar o gesto de coragem para a ação desmedida e necessária.
Descobri que o fascínio pela produção artística e pela geografia de onde nasci parte do mesmo lugar de encantamento telúrico e atmosférico. Desenhar, pintar ou modelar era como produzir um feitiço particular e dotar a matéria inanimada de vida e mistério sobre sua futura função no mundo. Fui cativado por esse momento banal e mágico do encontro entre um instrumento de registro e um suporte qualquer que recebe o impacto do gesto, acolhendo a matéria depositada sobre si.
E entender esse mesmo suporte como espelho.
› Matriz em processo e pinturas. Trabalho em processo no ateliê no bairro do Valongo, em Santos, São Paulo, 2024. Foto: acervo do artista.
Encontrar uma forma de comunicação não verbal que pudesse expressar e organizar essas sensações era como se aproximar do vocabulário secreto e silencioso das conchas.
Era como viver na paisagem.
A cidade onde nasci parece ser tragada pela Serra do Mar, o estuário e a umidade atlântica insistentemente tentando recuperar o terreno de origem, lembrando sua condição insular, impondo a prevalência dos mangues, dos rios e dos canais que atravessam seu corpo plano.
E o ateliê vibra em resposta a essa decomposição lenta e abafada, como um lugar onde exercito a inversão do tempo mercantil, buscando um gesto desalienado e original que trabalha a matéria, sem programa definido, perseguindo uma imagem aberta a ser revelada na passagem e na decantação dos dias. Perseverando no trato da madeira, do carvão, da cor da tinta que elaboro movido pelo trânsito contaminante de informação entre os meios: em pêndulo – do desenho para gravura para pintura para fotografia para a pintura para a gravura para o desenho.
› Trabalho em processo no ateliê no bairro do Valongo,em Santos, São Paulo, 2024.
Foto: Ana Pigosso.
Convivendo com o mesmo fascínio e deslumbramento, havia uma resignação traduzida pela realidade momentânea e fugaz do gesto, esse mesmo gesto que, sozinho, seria incapaz de revelar a totalidade da ideia e do sentimento sobre o tema. Passei a entender em cada novo trabalho que havia um lastro de linguagem sendo constituído e me permitia seguir adiante tateando, suprimindo e expandindo.
Uma dúvida sobre esse fazer autocentrado: Por quê? Para quem? Seria preciso avançar na resposta para sustentar, futuramente, uma prática pedagógica vivida nas oficinas de arte do Ateliê Acaia, com jovens e crianças submetidas a um sistema de privação de direitos.
A AÇÃO COLETIVA
No final dos anos 1990, existia uma vontade genuína (como em outros momentos históricos) de efetivar um novo circuito de formação, produção e difusão em artes visuais na cidade de São Paulo. Os diversos coletivos existentes nesse período identificavam com urgência a necessidade de promover ações engajadas e relacionadas a temas como a gentrificação e ocupação do espaço urbano público, a promoção de alternativas ao circuito mercadológico das gale- rias e uma ideia de ensino de arte baseada no fazer e na convivência entre artistas e público.
Naquele momento, integrava o Ateliê Espaço Coringa, que, desde a sua fundação e durante seus anos de atividade (1998-2009), representou esse desejo de emancipação coletiva e auto-organização política em que um ideário estético e pedagógico era exercitado na convivência das casas que habitamos e onde recebíamos colegas artistas e estudantes procurando não só experiência prática, mas também contexto de partilha.
Havia uma premissa que sustentava o cotidiano repleto de incerteza financeira e trabalho ordinário na gestão do espaço coletivo: desmistificar a figura do artista e aproximar o público da obra, transformando o fazer e a reflexão artística instrumentos apropriados por um maior número de pessoas, em contextos e condições sociais diversas.
A presença do artista e professor Evandro Carlos Jardim em diversos eventos e situações formativas foi crucial na manutenção e na sustentação do coletivo diante das ambições poético-político-pedagógicas que surgiam. Ouvíamos dele: “a tradição como transmissão de energia vital”, e aquilo soava como um enigma e, ao mesmo tempo,a chave para a continuidade de novas iniciativas e gerações de artistas.
› Espaço Coringa. Xilogravuras coladas nos tapumes de Santos. Projeto Lambe Lambe, 1999.
Foto: acervo Ateliê Espaço Coringa.
XILOGRAVURA EM GRANDE FORMATO: UMA AÇÃO POLÍTICO PEDAGÓGICA
› Aula de xilogravura com o 2o ano do Ensino Fundamental no ateliescola acaia, 2017.Fotos: acervo ateliescola acaia.
O Projeto Lambe Lambe foi um dos diversos projetos coletivos promovidos pelo Ateliê Espaço Coringa e Piratininga ao longo da primeira década de 2000. O projeto contava com a participação de diversos artistas de São Paulo e outras cidades do Brasil que produziam xilogravuras em grande formato e alta tiragem para colagens urbanas, ocupando espaços públicos degradados e tapumes temporários. Na edição de 2004, uma ex-professora e amiga artista, Elisa Bracher, participou do projeto e nos convidou para, junto a Flávio Capi, iniciarmos uma oficina de xilogravura no Ateliê Acaia. A iniciativa nasceu dentro de seu ateliê de escultura e gravura, na Vila Leopoldina, em São Paulo, e, quando chegamos, já se apresentava como um instituto constituído. O atendimento das crianças e dos jovens existiu como contraturno escolar até 2017, quando se tornou o ateliescola acaia, um projeto experimental de educação, arte e cultura para alunos e alunas desde a Educação Infantil até o Ensino Fundamental – Anos Finais.
O acolhimento e a produção de subjetividade a partir da convivência no ateliê eram o mote das oficinas de xilogravura. As dinâmicas coletivas exercidas no Espaço Coringa e uma ideia de integralidade entre o fazer e o ensinar fizeram que prontamente importássemos para o ambiente do Ateliê Acaia os mecanismos de produção e inserção do trabalho artístico no mundo. Era um grande desafio envolvendo vida e morte no destino de alguns daqueles jovens que se encontravam sistematicamente em situ- ação de violência e desamparo. Outra pergunta: Cavar e imprimir um pedaço de madeira teria algum valor ou sentido na escala de urgência do cotidiano?
› João Lucas gravando e imprimindo na prensa, 2017.
Foto: acervo ateliescola acaia.
A madeira trouxe a resposta: Seria mais uma prova de tenacidade para a maioria daqueles adolescentes. Fomos percebendo que a dureza do material ampliava a intensidade do gesto carregada pelos atravessamentos do dia e da vida difícil. No ateliê e com a xilogravura, era possível se frustrar, ter raiva e, ainda assim, encontrar um eixo neste diálogo com a matéria e os instrumentos de corte. Muitos dos momentos eram também de silêncio, nos quais cada um com sua batalha se enxergava quanto podia nos veios da madeira. Era preciso cativar pela própria beleza. O espelho.
Para transmitirmos o todo possível, era necessário conviver: para existir um coletivo, era necessário conviver no fazer. O estar junto estava estruturado por uma ética interna e intrínseca ao espaço da oficina de gravura, prevalecendo uma atenção plena e constante aos materiais, às ferramentas de corte, às prensas e a toda parafernália que podia, a qualquer instante, ferir gravemente um aluno ou uma aluna.
Ao mesmo tempo, era preciso transmitir um repertório real, técnico e instrumental envolvendo aquela prática. A madeira ensina.
› Grupo Xiloceasa na Feira Tijuana Danilo Juliano, Luiz Lira, Denis Araújo, Beatriz Lira e Santídio Pereira, 2019.
Foto: acervo do artista.
O embate com a matéria sempre foi crucial para determinar a qualidade da aprendizagem, e essa ética do fazer permeou a vida de vários jovens que conviveram entre 2004 e 2017 na oficina de gravura do Ateliê Acaia. Nesse contexto institucional profícuo, surgiu o coletivo Xiloceasa, formado por diversos artistas que hoje encontraram na xilogravura e na produção artística um modo de vida, de ser, de pensar, de produzir conhecimento e de agir politicamente no mundo em que vivem.
› Fabrício Lopez Estuário, 2008 Xilogravura em cores sobre papel kozo 220 x 480 cm
Foto: Isabela Matheus
Fabrício Lopez
Nascido em 1977 e natural de Santos, São Paulo, Brasil, Fabrício Lopez vive em Santos e em São Paulo, é mestre em poéticas visuais pela ECA-USP, sob orientação de Claudio Mubarac, e foi membro fundador da Associação Cultural Jatobá (AJA) e do Atêlie Espaço Coringa, que entre 1998 e 2009 produziu ações coletivas, como exposições, publicações, vídeos, aulas, intercâmbios e residências artísticas. Participou de diversas exposições coletivas, dentre elas Gravure Extreme, no Europalia; Trilhas do Desejo, do Programa Rumos Itaú Cultural; X Bienal de Santos (1o prêmio); Novas Gravuras, da Cité Internationale des Arts, em Paris, França; XIII Bienal Internacional de Arte de Vila Nova de Cerveira, em Portugal; e Arte Contemporânea no Acervo Municipal, do Centro Cultural São Paulo. Participou do Encontro Panamericano de Xilogravura, em Trois Riviérès, Canadá; de residência como artista convidado do Atelier Engramme, no Québec, Canadá; e do Centro de Residencias para Artistas Contemporáneos (CRAC) em Valparaíso, Chile, como prêmio do Programa Rumos Itaú Cultural. Realizou exposições individuais na Estação Pinacoteca, em São Paulo; e no Centro Cultural São Paulo, na mesma cidade. Além disso, integra os acervos públicos da Pinacoteca Municipal de São Paulo e da Pinacoteca de São Paulo (estadual); da Casa do Olhar, em Santo André, São Paulo; da Secretaria Municipal de Cultura de Santos, São Paulo; e do Ministério das Relações Exteriores, com o 1o prêmio para obras em papel do programa de aquisições do Itamaraty. Em 2015, ganhou o prêmio residência artística Arthur Luiz Piza.
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