ARTISTAS E AGENTES CULTURAIS NA DISSEMINAÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL
— Margarete Regina Chiarella
O que vem à sua mente quando se fala em Cultura Popular? Do que se trata? Quem a pratica? Como e onde acontece? Quem a promove? Desde cedo, essas indagações moldaram minha trajetória.
Na adolescência, minha curiosidade pelas histórias e práticas culturais das pessoas me levou à graduação em Economia Doméstica na USP, em que absorvi conteúdos de Psicologia, Antropologia, Sociologia, Administração, Alimentação, Saúde e qualidade de vida. Num dos estágios, participei do Projeto de Micro-empresas Rurais, promovendo a organização de pequenos produtores e formalizando-os em cooperativas. Essa experiência me despertou para a importância do estímulo ao desenvolvimento comunitário e à valorização das práticas locais. Mais tarde, como educadora do Curumim, programa socioeducativo do Sesc São Paulo (unidade Piracicaba), aprofundei minha com- preensão sobre a cultura popular como elemento identitário e expressivo de crianças e jovens, atuando na educação não formal.
Posso afirmar que o maior desafio não era logístico-administrativo, e sim lidar com suas necessidades práticas e emocionais.
Minha história, no trabalho, se amalgama com a arte popular quando comecei a arquivar docu- mentos institucionais, fotografias e registros administrativos do projeto Cenas da Cultura Caipira (1986), uma iniciativa com múltiplas linguagens artísticas, dentre elas uma exposição coletiva de 19 artistas (naïfs) convidados1 que seguiu até 1991. Eram expostas obras produzidas por artistas que revelavam com liberdade poética e espontaneidade o desafiador cotidiano do brasileiro, esgarçando questões sociais, desigualdades, contexto político e sincretismo religioso e expressando a pluralidade nacional. Essas mostras anuais desempenharam um papel fundamental no surgimento da Bienal Naïfs do Brasil, que teve sua primeira edição em 1992.2 Nesse sentido, houve adaptações na seleção dos participantes, passando de convites3 para um edital aberto, conduzido por uma comis- são de curadores, pesquisadores e artistas4. Isso facilitou as interações entre artistas emergentes e outros com carreiras consolidadas. O resultado foram exposições que promoviam a circulação de representações visuais entre diferentes segmentos da sociedade, revelando como a cultura é compartilhada e reinterpretada, disseminando estilos artísticos, símbolos culturais e modos de vida. As chamadas “Salas especiais”5 destinadas a artistas reconhecidamente naïfs foram abolidas definitivamente na edição de 20126. Isso marcou o compartilhamento explícito de espaços entre artistas convidados e selecionados, eliminando a rigidez artificial das categorias e possíveis distinções hierárquicas.
Foi nesse ano que recebi o convite para integrar o Núcleo da Bienal Naïfs do Brasil. Essa transição caracterizou o início de ações marcadas pelo apoio informal aos artistas. Assumi responsabilidades na organização e na coordenação do evento e percebi que um edital democrático não era suficiente: era crucial estabelecer proximidade e canais de comunicação acessíveis, como uma linha 0800. Mergulhei nessa empreitada, trabalhando nas horas livres e nos bastidores com as histórias e os desafios dos artistas de todas as regiões do Brasil. As dificuldades eram marcantes, desde o processo de inscrição, em que deparávamos com campos não preenchidos e ausência de documentos.
› Um dia de entrega dos Correios, 2014.
Foto: Margarete Chiarella.
› Reunião de planejamento com artistas, 2013.
Foto: Margarete Chiarella.
Então, eu passava horas ao telefone com eles, coletando as informações necessárias para escrever até seus currículos. Posso afirmar que o maior desafio não era logístico-administrativo, e sim lidar com suas necessidades práticas e emocionais. Com o objetivo de mantê-los ativos e unidos, foram oferecidos cursos presenciais e on-line focados em suas demandas – produção de portfólio; leitura de editais; técnicas de fotografia em ambientes domésticos, métodos de embalagem criando um cardápio de alternativas baratas, materiais regionais, como pipoca, folha de bananeira e chapas de MDF. A arte dita naïf, frequentemente chamada de arte ingênua (e que de ingênua não tem absolutamente nada), é caracterizada por uma simpli- cidade estilística que foge das convenções acadêmicas e técnicas formais. Essa ingenuidade é manifestada nas obras criadas pelos artistas, mas também se revelou em outras atividades.
Quando recebi uma obra embalada em páginas de catálogo, percebi a pureza e a simplicidade do gesto. Em vez de utilizar materiais sofisticados, os artistas aproveitavam o que tinham à disposição. Inspirada por essa prática, comecei a enviar materiais de embalagem aos artistas, como placas, cantoneiras e papel glacine, coletados e guardados cuidadosamente para o dia da devolução. Esse ato não apenas facilitaria a logística numa próxima exposição, mas man- teria a essência da simplicidade e da reutilização de recursos, refletindo a ingenuidade prática dos artistas.
› Carmelia Pereira, 2014.
Foto: Margarete Chiarella.
› Visita ao ateliê do artista Nestor Filho, 2017.
Foto: Margarete Chiarella
Quanto mais me aproximava dos artistas, mais se ampliavam os espaços de intercâmbio e as conexões se fortaleciam. No entanto, essas interações revelaram uma realidade preocupante: a dificuldade de acesso aos recursos culturais pela maioria. Determinada a intervir nessa questão, estabeleci pontos de apoio em todo o país, contando com a colaboração de artistas locais, representantes de órgãos públicos e privados, prefeituras, secretarias de Cultura e Turismo, bibliotecas e parceiros de outros estados.
Além dessas ações, estimulei e articulei o contato entre eles, formando pequenos núcleos em diferentes estados, para que cada um ampliasse seu alcance por meio da articulação com outros criadores, somando forças e criando uma rede de apoio. Apresentando oportunidades de crescimento, de autodescoberta, compartilhando alternativas, ou experiên- cias de outros artistas, eu os inspirava e motivava a buscar seus objetivos, estabelecendo com eles estratégias de aprendizado que facilitassem seu crescimento profissional. Desde o início, a ideia foi criarmos juntos uma grande malha tecida a muitas mãos, a partir de um processo de escuta ativa, numa missão de incentivo e reconhecimento aos talentos muitas vezes não desvelados.
Como um artesão de estratégias, elaborando e desenvolvendo soluções colaborativas, minha práxis consistia em orientar, sugerir e ser um agente de cultura atuante na modelagem dessas soluções e no fortalecimento de relações. Essa ação continuada possivelmente favoreceu o surgimento dos primeiros polos em várias regiões do Brasil, como Mato Grosso, Goiás, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro, Amazonas, Santa Catarina e interior paulista.
Ao longo dos anos, acompanhei transformações significativas na cena artística, com o surgimento de novos talentos e a ampliação de espaços para os artistas autodidatas que angariaram esses locais a partir de sua prática em pequenos coletivos ou articulada com a iniciativa público-privada. Foi prazeroso vivenciar suas conquistas e seu protagonismo. Como quando se aprende a ler: um mundo cheio de símbolos passa a ter significados.
Os artistas passaram a se inscrever e ser aceitos em eventos internacionais, já com um bom portfólio, uma imagem bem captada e sem recusas por falta de documentos. Mas cabe aqui falar em resultados? Existem métodos objetivos de avaliação? A objetividade me conforta, e a validação desse trabalho é na maioria das vezes baseada em critérios subjetivos. E não há qualquer problema nisso. Podemos avaliar os resultados por meio da convivência com os artistas. São notáveis mudanças relativas à auto- estima, ao relacionamento com a comunidade e representantes de espaços culturais, além da aquisição de novas formas de se relacionar com o conhecimento, técnicas e ferramentas atuais.
CRIARMOS JUNTOS UMA GRANDE MALHA TECIDA A MUITAS MÃOS,A PARTIR DE UM PROCESSO DE ESCUTA ATIVA, NUMA MISSÃO DE INCENTIVOE RECONHECIMENTO AOS TALENTOS MUITAS VEZES NÃO DESVELADOS.
Em meu trabalho tive a liberdade de criar minhas próprias estratégias para me aproximar dos artistas e de histórias segredadas a mim, desvelando seus contextos, suas peculiaridades, seus mitos e seus modos de vivência (ou “sobre-vivência”?) e alimentando minha paixão pelo que faço. É desse modo que a arte popular ressoa em mim: por sua autenticidade e sua ligação direta com a vida cotidiana das pessoas que traz consigo suas tradições, associadas a eventos comunitá- rios, rituais religiosos e festas, e tudo isso, acres- cido da visão crítica, política e social trazida pelo artista. É inegável a importância da instituição Sesc São Paulo e da Bienal Naïfs do Brasil como uma referência na promoção dos artistas dessa estética e na abertura de espaços para o diálogo e o intercâmbio entre artistas, instituições e diversos públicos. Posso afirmar que seus objetivos iniciais foram superados.
Foi possível identificar novos artistas, especialmente no “Brasil Profundo”, como dizia Ana Mae, e esse processo não tem fim. A cada edição, surgem talentos promissores em regiões muitas vezes subestimadas.
› Visita à exposição "Bienal Naifs do Brasil"com alunos do Ensino Médio, 2018. Foto: Margarete Chiarella.
› Recebendo artistas para entrega de obras na exposição "Bienal Naifs do Brasil", 2018.
É essencial dar continuidade a esse “mapeamento”, seguir ampliando os horizontes e as reflexões sobre o sistema artístico estabelecido, incluir a realização de capacitações, oficinas e cursos on-line, abrindo novos espaços para essa produção, além da necessária ampliação do conceito (uma nomenclatura nada livre de controvérsias e embates).Será que podemos concluir que a cultura popular é um universo em constante movimento, sempre evoluindo sob a influência de fatores históricos, sociais, eco- nômicos e tecnológicos? Se assim for, artistas têm papel fundamental na preservação da iden- tidade cultural de suas comunidades, ajudando a manter vivas as tradições e os valores locais.
Agora, você, caro leitor, poderia voltar às pergun- tas iniciais que abriram este texto? Quem realiza e como, onde acontecem as práticas culturais? Como podemos contribuir para a melhoria da qualidade de vida sem nos aproximarmos dela?
Se algum conteúdo deste texto movimentou suas certezas ou instigou suas convicções, já me sinto recompensada por cada segundo dedicado à escrita dele. Meu desejo é que novos talentos brasileiros sejam visibilizados e sirvam de inspiração para outros envolvidos na cena artística nacional. E ainda que minha história possa testemunhar a força da arte na transformação de pessoas.
NOTAS
Mostra Nacional de Arte Ingênua e Primitiva, uma exposição dentro do Projeto Cenas da Cultura Caipira, que aconteceu no Sesc Piracicaba, em 1986, com 38 obras de 19 artistas convidados.
Em 1996, optou-se pelo formato de seleção de obras
inscritas, permitindo que, em 2004, um total de 283 artistas de 21 estados se inscrevessem. A partir de 2006, o formato de edital impresso foi adotado e é mantido até então.
Até a sexta edição, em 2002, o evento contoucom a curadoria de Antônio do Nascimento,gerente adjunto do Sesc Piracicaba.
Salas Especiais: “Antônio Poteiro” (1996); “Iracema Arditi” (1998); “Waldomiro de Deus” (2000); “José Antonio da Silva” e “Eliza Mello e Mestres de Ontem e de Hoje”, apresentando 60 obras de acervos particulares e de artistas convidados (2002); “Mistura Fina”, com curadoria de Paulo Klein (2004); “Mostra [entre culturas]: Matrizes Populares”, com curadoria de Ana Mae Barbosa (2006); “AlcidesPereira, Eli Heil, Chico Tabibuia, Chico da Silva, Louco, Ranchinho, Nuca de Tracunhaém e Roseno”, com curadoria de Olívio Tavares de Araújo (2008); “Arte sem fronteiras”, com curadoria de Maria Alice Milliet (2010); e “Além da Vanguarda”, com curadoria de Kiki Mazzuccelli (2012).
O recorte “Além da Vanguarda”, com 21 obras de 10 artistas, trouxe obras do circuito dito “contemporâneo”.
Margarete Regina Chiarella
Bacharel e licenciada em Economia Doméstica pela ESALQ-USP, pós-graduada em Arte-Educação Ambiental pela mesma instituição e em Literatura e outras Linguagens Artísticas pela Unimep. Atualmente, integra a equipe curatorial da MABS_ Mostra de Arte de Brasileiros em Socorro – A cultura popular na estética Naïf, Curadora da exposição — Meu nome? Carmela Pereira! Após 35 anos de dedicação ao Sesc, consolidou sua carreira nas Artes Visuais, coordenando as etapas para montagem das exposições CRIA: Experiências de Invenção, 2023; Coração na aldeia, pés no mundo, 2023; 15a Bienal Naïf do Brasil, 2020 a 2021; Maquinações: Gambiólogos 33, 2019; Papeis Efêmeros-Memórias Gráficas do Cotidiano, 2019; 14a Bienal Naïfs do Brasil, 2018; Arte à primeira vista, 2017. Responsável pela secretaria geral da 11a, da 12a e da 13a Bienal Naïfs do Brasil (2012, 2014 e 2016). Integrante da comissão de organização do 50o (2018) e 52o SAC – Salão de Arte Contemporânea de Piracicaba e Exposição SAC 50 anos: Acervo, na ESALQ-USP (2013); e da equipe de Clearance do Acervo Sesc de Arte (2017). Instrutora de Atividades da área Arte-Educação Ambiental, na educação não formal.
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