Simone Moraes: a longa aprendizagem das Convivências
- latenterevista
- Jul 28
- 8 min read
—Valquíria Prates

Como garantir que, quando somos parte de um grupo que compartilha um mesmo propósito inicial a partir de um convite de alguém, estamos todos entendendo com precisão o seguinte: o que nos é comum e o que nos é individual? Seja em uma proposição artística, política ou educativa, a quem interessam as precisões e imprecisões do que se entende em um combinado? E mais ainda: como tentar garantir que cada um saia das experiências partilhadas com um pouco do que é com uma todos e com a graça individual do que lhe é faísca de criação e autoria?
Este texto não começa com a ambição de responder a essas questões em definitivo. Pretende desfiar essas e outras perguntas que já estavam lá, em algumas de nossas primeiras incursões na colaboração, em ambiente escolar, quando aprendemos a participar da criação de algo por meio da realização de trabalhos em grupo.
Neles, deparamos pela primeira vez com a escolha dos temas e dos pontos de vista para abordá-los, a distribuição de tarefas, o modo de realizar o que foi proposto e o desafio de uma mesma avaliação final atribuída ao grupo todo. Para muitos, essas situações são a primeira vez de deparar com os sentidos de valor e justiça. Até onde importa a cada um a autoria de quem fez cada parte dentro de uma proposta final?
As respostas vibrantes, passionais e minuciosas a essas inquietações nós podemos observar na tensão entre as desejadas autorias e o reconhecimento vivenciado pelos envolvidos – do alto de nossos 10 anos de idade, seja lá em que ponto da vida estivermos quando esse momento chegue.
Criar algo em coletivo quase nunca é tão simples quanto possa parecer. Geralmente, é mais demorado e sempre pode ser muito mais político que se poderia supor de um exercício “para casa” ou da realização de uma festa.
Nas artes ou na vida, costuma acontecer de os envolvidos aprenderem não apenas sobre o assunto a que se dedicaram todos, mas também sobre a liberdade,
os modos de fazer em coletivo, como se relacionarem uma empreitada comum e, especialmente, como se sustenta– e por quais razões – um convívio.
Essas aprendizagens não deveriam ser tomadas como inquietações triviais paraas artes, tampouco para a educação, sobretudo considerando que há pouquíssimo tempo passamos a considerar linguagem artística o que se pratica em nome da colaboração ou do envolvimento social a partir do convite de um artista a um grupo de pessoas para “fazer algo” junto.
E esse tipo de proposição artística nomeia bacharelados de graduação em Artes ou de programas de pós graduação, vem movimentando bienais no mundo todo há mais de uma década, já foi a base da última Documenta de Kassel, marcando presença nos processos de criação desde meados do século XX em ateliês coletivos, programações públicas e educativos de museus, intervenções em territórios de cidades, exposições e publicações sobreo assunto, propostas educativas de artistas, curadores e educadores em museus e centros culturais do mundo todo.
Embora possamos acessar muitos materiais de registro de ações, depoimentos e vivências, a cada novo projeto desse tipo é preciso criar estratégias como se fosse a primeira vez de todos os envolvidos.

E, assim, chegamos à razão de ser deste texto: gosto muito de pensar e experimentar sobre isso tudo coma artista Simone Moraes. Desde2018, venho tendo a oportunidade de conviver e pensar mais e mais sobre os modos como a participação, a colaboração e o fazer junto são coisas que aprendemos aos poucos em diferentes instâncias do espaço íntimo e do espaço privado. Quanto mais foco colocamos nesse tema em nossas partilhas, mais longe chegamos a um ponto de pensar sobre as confluências nas relações entre pessoas e com os vivos de todo tipo que habitam a porção de Cerrado onde a artista vem atuando, na zona ruralda cidade de Padre Bernardo (GO).
Trazendo um pouco de seu contexto de produção, vamos retomar alguns dos pontos que considero importantes no impacto das ações realizadas pela artista. Nascida em Ribeirão Preto(SP) e graduada em Artes na mesma cidade, Simone é uma das artistas mais comprometidas que conheço com as práticas de fazer junto, a um ponto de chegarmos a reflexões que causam a suspensão de determinadas ações por um tempo necessário e indeterminado diante das complexidades que envolvem as relações entre os participantes. Admiro essa coragem, porque muitas vezes envolve o risco de, ao recombinar decisões, ter de lidar com as escolhas de todos os outros, interromper projetos, romper colaborações momentaneamente ou de modo mais definitivo, caso não faça sentido o que se coloca em recombinado.
Em sua trajetória, Simone seguiu realizando sua prática artística enquanto trabalhava paralelamente com a agricultura e os cuidados com 14 a família, nos anos em que começou a investir no processo de alfabetização dos agricultores que trabalhavam em seus cultivos em Padre Bernardo (GO). Conforme os filhos foram saindo de casa, Simone intensificou sua participação
em cursos, residências e viagens.
Em 2013, em São Paulo, fundou, com os artistas Marcelo Amorim e Nino Cais, o Fonte, espaço independente que reuniu o ateliê dos três e segue desde então realizando residências artísticas, exposições e uma ampla programação pública com participações nacionais e internacionais, atualmente com a direção de Marcelo.
O interesse da artista por estar em coletivo ganhou novos contornos quando a artista foi convidada por Nilton Campos, diretor do Museu de Arte de Ribeirão Preto (MARP), para participar de uma residência artística no museu.
Simone ficou sensibilizada pela situação da biblioteca de Pedro Manuel Gismondi, com cerca de 3 mil itens guardados em caixas desde a sua morte, sem espaço fixo para acesso público e sem
a possibilidade de recursos para ser integrada ao museu. Foi então que decidiu dar início a um conjunto de trabalhos de restauração, higienização e organização das obras, realizando um conjunto de trabalhos, exposições e programações que expandiu sua forma de fazer arte, passando a envolver mais pessoas em seus processos de criação. Conheci Simone nessa ocasião.
Com Nilton Campos, a curadora Galciani Neves me chamou para estar junto na curadoria da exposição Desabrochar de um modo ou de outro, realizada no Palacete 1922 (Jorge Lobato), em Ribeirão Preto.
Foi a primeira vez que Simone reuniu muitas de suas obras em um único espaço, ocupando todos os ambientes do palacete. E foi a primeira vez que a artista conviveu com um grupo de educadores que com ela recebia diariamente o público do centro da cidade em um ateliê aberto, no piso térreo da casa: Camila Paulucci, Edna Cavalcante, Helena Janólio, Gabriela Costa Sertori e Rafaella Rímoli, que realizaram visitas mediadas e atividades artísticas.
Descobrir a extensão do que já havia produzido, somado à potência do processo coletivo vivido, mudou sua percepção como artista: “Eu não sabia que tinha um corpo de trabalho. Ele estava fragmentado. Agora está aqui, inteiro, vivo, em diálogo”.
Se até esse ponto de sua carreira a artista costumava conviver e conversar sobre arte principalmente com artistas, curadores e outros profissionais da área, a partir dali se evidenciaram como arte aqueles outros tipos de conversa muito viva que Simone costumava ter nas roças e nas matas por onde passava no dia a dia. Ela costuma dizer que, desde então, a arte que lhe interessa fazer é essa do convívio.

Seus gestos de coleta, classificação e arquivamento, pontos de escuta entre saberes e memórias dos lugares como modo de convivência se tornaram métodos de trabalho da artista.
Do ciclo de quatro exposições realizadas por Simone na ocasião da residência, com a curadoria de Galciani Nevese Nilton Campos, foi ganhando força em sua produção um movimento intencional de propor reflexões culturais e sociais em torno da necessidade de fazer parte e interagir com o ambiente de seu território e contribuir com os debates a partir de uma posição feminista na partilha de conhecimentos, experiências e percepções de mundo que foram duramente negligenciados ao longo da história dos lugares.
Foi durante 2018, ano de residência no MARP, que a artista começou a instaurar o projeto da Biblioteca Floresta, em Padre Bernardo (GO), uma biblioteca que “não é só árvore, é desejo”. O processo de higienização dos livros – uma etapa técnica do projeto – ganhou contornos poéticos.
As mãos que limpavam, organizava me protegiam também tocavam histórias, poeiras de muitas existências. Era como se o gesto de cuidar dos livros fosse, ao mesmo tempo, um cuidado de si.Um gesto coletivo de transformação que afetou a todos: equipe, artistas, visitantes. O projeto não mostrou apenas obras, ele desdobrou pessoas. “Não foi só uma exposição. Foi um processo de transformação contínua, um modo de estar junto, de criar vínculos”, ela disse.
Outro ponto que emergiu com força em sua prática foi a presença crescente das mulheres em suas proposições. Atualmente, a Biblioteca Floresta é um trabalho que possibilita a realização
poéticas de muitas outras proposições artísticas que têm início com os convites de Simone para conviver. Cada vez mais, o trabalho vem se tornando um campo fértil de pesquisa –botânica, estética, sensível, que tem a intenção principal de ser um espaço de escuta. Escuta do mundo,
das histórias e de si, a defesa de que ali o fazer artístico não se separa da vida.
E que, como uma semente que germina no escuro da terra, há processos que só florescem quando encontram solo fértil, diversidade de estímulos e variação adequada de clima – feito aquele que ela encontrou, poeticamente, no interior das bibliotecas de seu pai e de Pedro Manuel Gismondi, no MARP. Dentre as ações realizadas, interessa-me como as Convivências, proposições colaborativas de imersão na Biblioteca Floresta, são realizadas com a mesma intensidade de desenhos, objetos, performances, projetos colaborativos e instalativos. Simone propõe rituais de caráter curativo, vivencia ações de permanência em ecossistemas e cria modos de registro dessas temporalidades, visando a constituições poéticas/pedagógicas.
Os formatos são sempre variados, mas, em geral, a artista convida um grupo para se dedicar a um tema ou um foco por alguns dias, em convívio na Biblioteca Floresta.
Ali, conversas, expedições, plantios, práticas de ateliê, segredos, sonhos e descobertas acontecem de forma independente a partir das trocas entre os participantes, nas refeições, nos deslocamentos, em duplas, trios, rodas, com o objetivo único de estarem juntos por um tempo, e sempre sem
o compromisso obrigação de realizarem um trabalho artístico em grupo.



O trabalho é conviver com os vivos da Biblioteca Floresta. Muitos dos que passaram pelas Convivências mudaram de rota e iniciaram outros trabalhos, outras investigações, outras buscas.
Esse tipo de imersão marca o modo de operar da Biblioteca Floresta.Ela não se apresenta como um lugar finalizado, e sim como uma proposta em constante desdobramento: uma instalação viva, um laboratório afetivo, um espaço de pesquisa e escuta. Simone passa dias inteiros com livros, com plantas, com gente, com silêncios.
A floresta continua expandindo seus contornos. Com novas pesquisas sobre aves, regeneração e práticas agroecológicas, há muitos artistas, educadores, pesquisadores e outras pessoas que passaram a frequentaro espaço e testemunham a chegada de outros vivos do Cerrado que há muito haviam deixado de frequentar o lugar.
A Biblioteca Floresta virou plataforma, campo de troca e rede de afetos.
Simone diz sempre que “Uma floresta não é só árvore, ela é desejo, é colaboração, é encontro entre humanos e outros vivos”. E é nesse lugar de atravessamentos que sua arte acontece, tecendo vínculos.
O que vimos nascer ali no MARP foi mais que uma residência, foi mais uma evidência de que arte, ciência e educação, quando se tocam, têm o poder de reconfigurar afetos e transformar como nos relacionamos com o mundo – desde que exista a intenção de aprender a conviver.

Valquíria Prates
Atua na mediação cultural das artes visuais e da literatura como pesquisadora, escritora, curadora e educadora em museus, bibliotecas, universidades, escolas e instituições culturais. Graduada em Letras e em Pedagogia e mestra em políticas públicas de acessibilidade pela Universidade de São Paulo, é doutora pelo Instituto de Artes da Unesp com a tese Como fazer junto: a arte e a educação na mediação cultural. Atualmente é colaboradora do Museu de Arte Moderna de São Paulo, do Instituto Moreira Salles, da Fundação Roberto Marinho, do Polo Sociocultural Sesc Paraty e do Instituto de Arte Contemporânea de Ouro Preto.
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