Vivências poéticas do feminino em processos de criação em arte de Ivy Ota Calejon
— Valquíria Prates
O apito chega ao longe, os reconheço pela penumbra que carrego em meu corpo, pela textura áspera que minha pele encontra no atrito com os vazios. Poderia escrever palavras sobrepostas umas às outras: dançar_escrever_bordar, e esperar pelo desmoronamento de todos os limites. Então me sentiria ao lado, ou dentro daquilo que busco e que é o inverso de qualquer afirmação.
Ivy Ota Calejon em “Vagão_onde me encontro no trem: recolhas de gestos desdobrados pela materialidade”
Piracicaba. Manhãs pandêmicas de quinta-feira. Mulheres se reúnem para ler, escrever, bordar.
O ponto de encontro é a tela, as linhas são de costura, de bordado e de textos. O convite é para participar do trabalho Tecituras de Lina, grupo de pesquisa e convívio de poéticas do feminino em fazeres, dizeres, formas e materialidades que passam por tecidos, pigmentos, agulhas e coragem de assumir os riscos de cada escolha que determina os caminhos dos processos de criação e investigação pessoais. Quem convida é a artista Ivy Ota Calejon, que com as participantes movimenta uma intrincada teia de emoções, reflexões e sentimentos que movem as escolhas e as decisões que levam os bordados – e a vida – a tomar forma, entre processos de (auto)criação atravessados pela história, pela arte, pela cultura e por algo que ao mover se faz desejo de movimento. Ali, na roda, tomamos contato com um conjunto de pontos bem conhecidos de bordadeiras do mundo todo: aprendemos movimentos de agulha e tecido, repetimos, e repetimos, e repetimos.
Ninguém memoriza nada, ao contrário: os gestos para cada ponto vão sendo instaurados como pequenos movimentos para coreografias solo, improvisos e aos poucos vão se tornando peças, partituras, poesia.
Ivy apresenta frente e verso como possibilidade, o avesso como possibilidade de forma, a possibilidade de dar escala ao encadeamento dos pontos, e cada mulher passa a criar suas próprias danças no território do tecido rasgado à mão ou cortado com precisão. Toda escolha pode ter ali um equivalente para o vivido de cada uma: o que fazer com o ponto que “deu errado”: desmanchar e começar de novo, fazer um buraco no tecido e arrancar o ponto, fazer outro ponto por cima e tirar da vista o que ali estava?
A motivação de cada escolha nunca é determinada por outra pessoa, mas o grupo, quando convocado e mediado pela artista, pode contribuir com sugestões e ideias sobre o que poderia ser feito em cada caso. Como numa roda de mulheres num bar, na calçada ou na praça, na cozinha após um almoço de domingo, num mutirão para a construção de uma casa, em um retiro de autodescoberta.
A cada encontro, o sentimento de autonomia diante do próprio processo de criação vai crescendo – ainda que, ao final de um mês, tenha sido feito um bordado de dez centímetros quadrados ou de dez metros lineares em que um único movimento de alinhavar tenha se repetido à exaustão de passos largos ou miúdos.
Nesse grupo de pesquisa tem sempre gente chegando e saindo, trazendo e levando coisas, ideias, gestos que dizem respeito a um modo de criação inerente ao processo de fazer e investigar arte como ateliê de costura, sala de dança, clube do livro. Tudo isso é o que quero trazer para este texto, como um lugar onde possamos nos encontrar para reconhecer um pouco do que atravessa os processos de pesquisa e criação desta mulher, Ivy Ota Calejon, artista multidisciplinar que vive em Piracicaba (SP), arquiteta, cenógrafa e investigadora das interseções entre as artes manuais, a dança contemporânea, a performance e a escrita como gesto de criação.
Sua produção artística lida com essenciais cotidianos e mínimos biográficos do feminino, partilhando o seu gesto particular como possibilidade de conexão universal em arranjos coreográficos de palavras e gestos arriscados, alinhavados e tramados como leituras de mundo em trânsito que se atravessam em mim e em você.
Em seus processos de pesquisa e criação, o corpo se faz meio para investigar fluxos de trocas entre diferentes formas de expressão, mobilizando interações poéticas com as matérias por meio da abordagem das complexidades da experiência humana a partir de subjetividades femininas. O têxtil ganha texturas da pele que encontra outras materialidades: cores se impregnam por meio de técnicas de tingimento com índigo japonês plantado pela artista e impressão ferrosa feita com peças recolhidas pelo caminho, camadas e atravessamentos são criados com a intervenção usando técnicas de bordado japonês como o boro/sashiko. Para além dos resultados formais, seu interesse nas implicações poéticas dos modos de atravessar os tecidos ganham densidade com seus estudos focados nos gestos que constituem cada uma das técnicas utilizadas.
Quero te levar até um trabalho, o Linhas que insistem em errar (2022), uma de suas danças-poema, obra em contexto, pedaço de vida com forma intencional dada pelas palavras escolhidas por Ivy Ota Calejon com o rigor de quem “precisa ao dizer”. Nossa viagem dura três minutos e quatro segundos, mas o seu trajeto depende das linhas que você escolher tramar quando clicar e chegarmos a Pindorama (SP):
Se na história da arte e da dança existem bons momentos de encontro poético entre as duas linguagens, a produção de Ivy certamente é um desses lugares vivos:
Não encontro mais a via que compartimenta as linguagens em mim. Percorri muitas linhas até chegar aqui. O tempo entreteceu-nos. A materialidade do fio, a compreensão do bordado como processo, os passos dados como quem atravessa paisagens ou se deixa atravessar por elas. Subterrâneas. Líquidas. Cada gesto que compõe um ponto move meu corpo, dança em mim e me põe a dançar.
Ivy Ota Calejon em “Vagão_onde me encontro no trem: recolhas de gestos desdobrados pela materialidade”
Em Linhas que insistem em errar (2022), a pesquisa da artista nos leva até a estação Pindorama (1909), em sua cidade natal, um dos pontos de encontro da Estrada de Ferro Araraquara (1896).
O lugar já teve o nome de Palmares, já foi escola pública e segue existindo como lugar que guarda deslocamentos, encontros, desejos de conexão e bem-viver sentidos e abandonados em diferentes tempos por muita gente. As paisagens do entroncamento que liga Pindorama a Jales, cidade onde viviam os avós da artista, atualmente se tornaram o canteiro onde a artista cultiva grande parte dos questionamentos sobre sua origem nipo-brasileira, a miscigenação de técnicas, corpos e culturas do Brasil e do Japão, bem como os deslocamentos migratórios de famílias com ascendência japonesa no interior de São Paulo, de uma estação à outra, de um país a outro.
Ao recolher as peças enferrujadas que associa à história de vida de seu avô imigrante japonês,e revisitando paisagens tão íntimas do lugar onde ele trabalhava como artífice carpinteiro, a artista empreende uma arqueologia de materialidades, memórias e afetos. Ela mapeia as paisagens encontradas, espirituais, geográficas ou biográficas: assim como o alcoolismo de seu avô e os estados de esquizofrenia de sua avó, que é simbolicamente evocada nos fios dourados que atravessam muitas de suas imagens.
› Ivy Ota Calejon. Vagão_onde me encontro no trem_02, 2022
› Ivy Ota Calejon. Não há parada, 2022.
Ivy cria uma narrativa impregnada de gestos singulares, linhas intencionais e entrelaçadas que instauram um ritmo selvagem de deslocamento por outras matérias: seu corpo, lugar da experiência, substância viva, latente, potência de cura fermentada dos invisíveis familiares que precisam ser vistos e reconhecidos para seguirem em forma de pulsação.
Eles existiram e ainda existem, espelham outras narrativas-mesmas de todas nós, como os alinhavos que juntam partes de tecidos de origens diversas, imprimem seus ritmos a passos tão variados quanto os das peças bordadas pela artista.
Dentro do corpo, essa experiência possibilita a criação de linguagens que se dissolvem fora da pele e produzem desejos transbordantes de impossíveis, capturam as urgências do que escapa e pela voz, órgão de extensão do corpo, se expande e ocupa criando ambiências.
Nessa jornada, a técnica de tingimento de tecidos chamada “impressão ferrosa” estabelece uma analogia poética com processos de impressão, apagamento e desfazimento de históriase tecidos, em que estados corrosivos das linhas de trem tomam posse e ocupam seu corpo, sua dança e sua maneira de bordar e de escrever. São linguagens artísticas que se tramam na vida e na criação poética de encontros-ateliê, livros de artista, peças bordadas ou na criação de uma videodança, que pode chegar até você nas páginas desta revista ou em uma instalação imersiva em que não apenas seus olhos dançam, mas você também, de corpo inteiro se deslocando com Ivy, em uma dança com os invisíveis de sua própria história.
Valquíria Prates
Curadora, pesquisadora e educadora, é graduada em Letras e mestra em Políticas Públicas de Acessibilidade pela USP e doutora pelo Instituto de Artes da Unesp, com a tese Como fazer junto: a arte e a educação na mediação cultural. Fundadora da AVE (Agência de Viagens Espaciais), atua como colaboradora de museus, bibliotecas, universidades, escolas e instituições culturais; coordena programas de educação, mediação e formação; realiza curadorias de exposições e organiza publicações. Atualmente é curadora do Instituto de Arte Contemporânea de Ouro Preto (IA), colaboradora do MAM São Paulo e do MIS Rio de Janeiro, coordenadora de Mediação Cultural do Polo Sociocultural Sesc Paraty.
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