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MANUAL DE LOBOTOMIA

leo alvim









Como ignorar a realidade através de discursos pobres, fajutos, acompanhados de hipocrisia e falsa coletividade?


Este manual/guia de campo tem como objetivo a extinção em massa das vontades humanas que perturbam e impedem a grandiosidade da vida pacata imposta pelo sistema capitalista vigente. Um guia para ajudar o portador a deslizar entre situações cotidianas, da miserável escolha do pó de café matinal à decisão de agir nas honestidades e mesquinharias do egoísmo sistemático. O caminho para o mais fácil, conveniente, esperançoso, belo e abafado pela positividade em meio ao apocalipse e destruição generalizada.


manual. [Do lat. manualis.] Adj. 2 g. 1. Relativo a mão: habilidade manual 2. Feito com as mãos: trabalho manual. 3. Que é manobrado ou acionado com as mãos: máquina manual 4. Maneiro (1). - V. abecedário -, alfabeto -, câmbio -, composição -, margeação -, prelo - e terraplanagem -. S. m. 5. Pequeno livro. 6. Livro que contém noções essenciais acerca de uma ciência, de uma técnica etc.; compêndio, epítome: manual de geografia. 7. Livro de ritos e rezas; breviário. 8. Mús. Teclado de órgão. [Cf., nesta acepç., pedaleira].


guia. [Dev. De guiar] S. f. 1. Ato ou efeito de guiar. 2. Documento que acompanha a correspondência oficial e a isenta de pagamento de porte, ou que acompanha mercadorias para que tenham livre trânsito. 3. Formulário usado em repartições públicas para pagamento de importâncias devidas, notificações, etc. 4. Vara que assenta a empa da vinha. 5. V. remígio (1). 6. V. galocha (2). 7. Cada uma das longas correias que se afivelam nas tesouras e se comunicam com o freio dos cavalos de tiro. 8. Correia comprida que se afivela na argola do cabeção de um cavalo para exercício de picadeiro, ficando a outra extremidade na mão do picador. 9. Peça que dirige o movimento do êmbolo das máquinas de vapor. 10. Os pelos de cada um dos extremos do bigode: “a barba loura apartada em leque, o bigode torcido em grandes g u i a s” (Ramalho Ortigão, Notas de Viagem, p. 29). 11. Art. Gráf. V. baliza (9). 12. Bras. V. meio-fio (1): “Depois se equilibrou na g u i a do passeio, pesadamente desceu ao leito da rua.” (Antônio de Alcântara Machado, Novelas Paulistanas, p. 246.) 13. Bras. Bebida que se toma antes de outra. S. 2 g. 14. Pessoa que guia, orienta outros. 15. Pessoa ou profissional que acompanha turistas, viajantes etc., chamando-lhes a atenção para o caminho por onde seguem e dando informações sobre ele e sobre as obras de arte, edificações ou coisas importantes com que vão deparando. S. m. 16. Livro ou publicação de instruções acerca de algum ramo especial de serviço ou de qualquer assunto: g u i a do criador de porcos; g u i a das mães. 17. Publicação destinada a orientar habitantes ou visitantes de determinada região ou cidade, sobre atrações turísticas, estradas, logradouros, horários de transportes etc.; roteiro. 18. Marinh. Cabo preso a um objeto que está sendo içado ou arriado, para lhe ir dando a direção conveniente. 19. Bras., RJ. Folcl. V. orixá. 20. Bras. Folcl. Espírito de alta elevação e luminosidade, nos centros umbandistas. 21. Bras. O vaqueiro que encabeça a boiada. Guia de onda. Fís. Tubo condutor, ou cilindro dielétrico, capaz de conduzir uma onda eletromagnética ou de irradiá-la para o espaço.


Qualquer trabalho, texto, obra, imagem, comportamento, ser, estar [...] que se relacione ao fracasso corre o risco de não ser levado a sério. Então, antes que algo mais passe por sua cabeça, além de não dar a volta por cima, este texto é uma crítica ao sistema capitalista em que vivemos. Para aqueles que gostariam de se enquadrar, ter uma vida tipicamente comum, sem grandes preocupações, livre de distúrbios mentais e sem a perda da noção da realidade laudada pela sociedade, as psicocirurgias são a única saída antes do suicídio. Depois da pulverização das ilusões e delírios sobre nossas vontades, desejos, aspirações, sonhos, personalidades e sentimentos a respeito de, definitivamente, qualquer coisa, ser lobotomizado não soa tão ruim. Paz de espírito? Agora não há mais com que se preocupar. Nirvana? Não há mais sofrimento algum. Iluminação espiritual? Mas como é possível se você já morreu? E como morrer se você nem existe? A partir de uma configuração de atitudes mundanas, busca-se o desentendimento das escolhas das quais fazemos diariamente ao longo de nossa existência em sociedade, do que se diz e do que se faz, do que se revela e do que se omite, seja por uma cortina vermelha, uma porta de frigorífico, por construções sociais, pela hipocrisia sistemática ou pela positividade excessiva que nos consome e soçobra a buracos inimagináveis. O caminho para o mais fácil, conveniente, esperançoso, cômodo, belo e abafado em meio ao apocalipse e destruição apoteótica generalizada. Terapias de choque, repetições, reprogramações, mensagens de superação, de motivação, gratidão e esperança devastam nossas consciências de ações e reações sobre a realidade em que vivemos. Enquanto a lobotomia transmuta-nos em vegetais de carne e osso, as lavagens cerebrais nos convertem em aparelhos controlados pelo que consumimos, sem indagar quaisquer tipos de ordem, ambientes, práticas, preceitos, hábitos alimentares, políticas públicas.... sempre seguindo o fluxo. A lobotomia acontece quando as múltiplas tentativas de lavagem cerebral falham. Alterações de hábitos alimentares para uma alimentação saudável, ou agradecer seu vizinho pelas frutas que ganhou, retribuir favores no escritório do trabalho, devolver as chaves que caíram do bolso de um estranho enquanto corria para pegar um ônibus. Esses acontecimentos não fazem do mundo um lugar melhor. Direciono esse pensamento à hipocrisia da positividade, ao amanhã que será melhor mas não é, ao pregar a união e não dar a mínima para as pessoas ao seu redor, ao lavar as mãos das situações políticas e sociais, ao servir um prato com gosto de culpa e pecado, ao dizer palavras amáveis de esperança e progresso, mas defender e conservar o estado das coisas, afundar-se na “energia positiva” ditada pelo sistema capitalista, não muda a avassaladora realidade e a destruição cataclísmica excessiva e massificada, o mundo lá fora continuará a ser consumido. Sempre relacionados ao fracasso, os movimentos, nichos e fenômenos socioculturais e artistas de contracultura são os que trazem a estranheza e o caráter contrariador que inspiram este manual/guia de campo como a banda Teto Preto com seu álbum Pedra Preta (2018) interpretado por Laura Díaz, multiartista, à qual traz, incessantemente, discussões políticas, de gênero, sociais, sexuais e culturais à tona por meio de intervenções artísticas coletivas na cena independente de São Paulo. O disco, firmado por sua sonoridade ruidosa e versos à mercê de uma interpretação premeditada, o misto de desespero, aceitação e a incerteza do existir, é transformado em um instrumento que assiste à escalada do processo contestatório de modelos concebidos como destrutivos no Brasil e no mundo ao longo de suas oito faixas: Safo, Ita, Em D+Ividas, Gasolina Aditivada, Bica, Pedra Preta, Raio e Bate Mais. Trata-se da recusa à participação de ritos sociais consagrados, de uma configuração normativa amarga de autodesenvolvimento que proporciona oposições radicais a modos de respeitabilidade, relações de poder e a fabricação da loucura.


Assim como nos mandamentos do cristianismo ensinados no livro sagrado, as possibilidades de questionamentos e a desobediência das ordens claras e evidentes providas por este manual, são punidas com uma vida desgraçada por suas próprias meias-escolhas, o não cumprimento das regras garante uma passagem só de ida para o inferno, viver num eterno e ininterrupto purgatório. No budismo, as normas são mais simples e resumidas do que no cristianismo. Obediência com o pretexto de crescimento pessoal e espiritual. “Aquele que observa os Cinco Preceitos está sempre alegre e satisfeito e sua boa reputação à distância será conhecida; seres celestiais amor e respeito por ele sentirão e sua vida neste mundo será com doce êxtase preenchida.” (HSING YUN, 2011). Chame do que quiser, regras, preceitos, etiquetas, mandamentos, diretrizes, obrigações, conselhos, sugestões... Todos estes manuais servem apenas para o controle das vontades humanas. As coisas são como são, bem como as palavras e seus significados. A felicidade compulsória prescrita é um dos objetivos finais deste guia aqui descrito, assim como nestes outros manuais brevemente citados. Aqui, podemos definir esta felicidade como ferramenta de controle, bem como o amor romântico, representado pelo mito das almas gêmeas (MENEZES, 2007) trazendo mais do que apenas um sentimento sobre determinada pessoa, mas um certo tipo de submissão usada para alienar e manipular escolhas de grandes multidões. O conceito de algo Bom, Belo e Verdadeiro, pilar central da vida do homem, prometedor da perfeição e da felicidade plena, entrelaçada única e exclusivamente à terceirização da autonomia do ser. Afundar-se na lama da vida normal é a brecha para o sucesso, para livrar-se do sofrimento eterno. A submissão e reverência são o caminho para a paz espiritual e liberdade corpórea somente atingida após psicocirurgias. A lobotomia liberta o corpo. Esse é o objetivo deste manual/guia de campo, mergulhar na normalidade em busca de se enquadrar, ter uma vida tipicamente comum, sem grandes preocupações, livre de distúrbios mentais seguindo a noção da realidade ditada pela sociedade depois da pulverização das ilusões e delírios sobre as vontades e desejos. Não cabe a este ensaio oferecer e repensar alternativas para um futuro brilhante e utópico de sociedades acolhedoras que permitem a comunicação de nossos lobos frontais com o restante do cérebro e, assim, possibilitar a concretização de nossas vontades através da autonomia e liberdade. Busca-se apenas a sobrevivência física no modelo social atual macabro, desintegrando toda consciência dos indivíduos lobotomizados.







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bIBLIOGRAFIA

BARRETO, Antônio Carlos. Leucotomia Pré-Frontal A Egas Moniz, Técnica, Resultados Imediatos E Tardios em 100 Casos. São Paulo: 1945.

BARRETO, Antônio Carlos., Lobotomia Pré-Frontal. São Paulo: 1945

CAPELLARI, Marcos, Alexandre. O discurso da contracultura no Brasil: o underground através de Luiz Carlos Maciel (c.1970). Tese (Doutorado em História), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007.

DIAZ. L a u r a SPCULTURA, 2015. Disponível em: <https://spcultura.prefeitura.sp.gov.br/agente/1080/%7B%7Bseal. singleUrl%7D%7D>. Acesso em: 09 ago 2024.

EHRENREICH, Barbara. Sorria: como a promoção incansável do pensamento positivo enfraqueceu a América. Rio de Janeiro: Record, 2013.

FACCHI. Cleber Críticas: Teto Preto: "Pedra Preta". Música Instantânea, 2018. Disponível em: http://musicainstantanea. com.br/resenha-pedra-preta-teto-preto/>. Acesso em: 09 ago 2024.

FERREIRA, Aurélio. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. HALBERSTAM, Jack. A arte queer do fracasso. Pernambuco: Cepe, 2020.

MENEZES, Maria Célia de. O mito do amor romântico: Fragmentos de cultura, Goiânia,.v. 17, n. 5/6, p. 539-572, maio/jun. 2007.

OLIVEIRA, William Vaz de. A fabricação da loucura: contracultura e antipsiquiatria. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1,p. 141-154, jan.-mar. 2011.

POERNER, Bárbara. Teto Preto lança novas faixas, formação e imagem na casa de criadores. ELLE, 2021. Disponível em: <https/ /elle.com.br/moda/teto-preto-apresentanova-formao/particle-5>. Acesso em:09 ago 2024.

YUN, Venerável Mestre Hsing. Budismo: Significados Profundos. 2 ed rev e ampl. São Paulo: Escrituras, 2011..



 

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Artista plástico e professor, nascido em São José dos Campos (SP) e criado em Tefé (AM). Formado em Licenciatura em Artes Visuais na Universidade do Vale do Paraíba, fez residência no Ateliê Johann Gutlich (pintura óleo e acrílica) e no Ateliê De Etser (litografia e calcogravura). Atualmente explora técnicas de costura e bordado em conjunto com seu mais recente trabalho: “ ”, em que observa o ser e existir no mundo contemporâneo através de reflexões sobre ‘fracasso’, ‘loucura’, controle e submissão. É professor da rede municipal de São José dos Campos, idealizador do projeto STIGMA; prêmio Trajetória Artística pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo; membro do projeto Pausa Onírica premiado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo e ProAC-SP.


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