O que pode uma residência artística situada? Entre pedagogias e cuidado no Cerrado
- latenterevista
- Aug 1
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— Tati Antunes

Terra Saúva se propõe a ser um lugar de encontro para ações criativas que cultivem tanto o solo quanto os vínculos entre o território humano e o mais que humano. Localizada em uma área de ecótono – zona de transição dos biomas Cerrado e Mata Atlântica, no interior de São Paulo –, a residência assume a perspectiva de que a relação entre cultura e cuidado ambiental é fundamental para preservar a qualidade das águas e a integridade do sistema de rios e córregos que afloram de sua atividade.
Como outros locais de encontro, ele também é um espaço potencialmente formador. Situada no Condomínio Ecológico Santa Rita, a casa integra um projeto ambiental associativo com 50 famílias no bairro da Demetria, voltado à preservação de um fragmento deCerrado – lar de espécies ameaçadas por mineração, monocultura e outras indústrias.
Apesar dos avanços da comunidade em soluções sustentáveis, como manejo de resíduos e construções que priorizam o solo, persiste uma fratura socioambiental em relação a outras áreas da cidade. Foi nesse contexto – de solos, águas, vínculos, contradições – que desenhamos o programa de residência, sustentando a pergunta:o que pode uma residência artística situada?
Que pedagogias emergem da interlocução com o território?
Neste breve ensaio para a Revista Latente, pretendo apresentar as condições quenos colocaram atentas para a construção da programação da residência na Terra Saúva e dizer que a escrita foi feita por Tati Antunes, socióloga, idealizadora da casa e colaboradora na construção do programa.
Em 2023/24, lançamos a primeira chamada nacional para o Programa de residência artística Habitar os Vínculos – foco deste ensaio –, que recebeu propostas para cinco ciclos de residência.
Com duração aproximada de dois anos, o programa selecionou dez projetos de experimentação artística individual por convocatória pública. Na busca por aprofundar as discussões do programa no contexto local e contextualizar os artistas residentes no território, a equipe organizadora, sob a coordenação de Ana Luiza Braga, estruturou a programação da primeira semana de residência com uma série de encontros conduzidos por mestres, artistas locais e convidados.
Mais que concentrar as atividades em um único local, a proposta foi deslocá-las para paisagens diversas – ruas, florestas, sítio arqueológico –, circulando por matrizes estéticas plurais da região e aproximando práticas artísticas do território. Essa escolha não apenas fez circular o programa, como ativou lugares e sensibilidades do local, como escutamos dos participantes.
Carolina Santos, idealizadora do projeto Jardim Amarelo, destacou que as atividades realizadas em sua horta urbana “modificaram o terreno”, tanto no sentido físico, da transformação gradativa
da horta, como no social, ao receber novas pessoas para o projeto e gerar convites em outros eventos na cidade. Já Gilberto Junior, artista residente e morador de Botucatu, compartilhou que a vivência durante a primeira semana de atividades o fez “reconhecer o próprio território”.

A convocatória foi aberta a investigações centradas nas relações de agentes e espécies que mantêm a continuidade dos viventes e dos vínculos entre comunidades e territórios. Com o objetivo de fomentar a criação de linguagens poéticas e metodologias artísticas que procuram expandir os termos da ação política. – trecho da convocatória.
Durante a edição, percebemos na fala de outros participantes a ressignificação das paisagens cotidianas. Esses depoimentos mostram como o deslocamento das ações para além da Terra Saúva não se limitou a ampliar o acesso, mas reconfigurou vínculos afetivos e coletivos na cidade, reforçando nossa visão programática de integrar a investigação individual dos artistas com outros projetos e espécies mais-que-humanas.
Um exemplo de como o núcleo de coordenação também teve a sua prática reconfigurada pela escuta ativa emergiu durante as conversas de avaliação: ao visitar o sítio arqueológico do Serrito, os artistas residentes relataram o potencial simbólico das gravuras rupestres para os seus trabalhos, questionando a ideia de arte e sua perenidade: afinal, o que fica dos gestos presentes? Essa experiência foi tão impactante que nos fez alterar a programação da residência, incluindo esses espaços de memória nos ciclos seguintes de residência.
Essa dinâmica do núcleo de coordenação encontrou ressonância direta nas contribuições dos artistas convidados para as oficinas e o acompanhamento crítico. André Vargas, Ana Lira, Walla Capelobo, Mara Pereira, Charlene Bicalho, Mãe Celina e Aline Motta. Esses artistas visuais e sonoros, intelectuais e praticantes institucionais do campo trouxeram para o diálogo metodologias dissidentes e epistemologias do corpo, da memória e da travessia que contribuíram – seja durante as visitas à Terra Saúva, seja nos encontros depois das atividades – com outras camadas de decisão e atuação institucional.
Assim, a Terra Saúva busca ser um espaço de criação que amplia seus próprios termos no diálogo com o solo, as águas, as memórias subterrâneas e as urgências do presente. A experiência coletiva com as semanas de residência nos fez experimentar potenciais enlaces da criação com convidados e agentes do território – humanos e mais-que-humanos. E os encontros artístico-pedagógicos podem sugerir caminhos de reparação e invenção de vínculos com o gesto do cuidado. As “obras” deixadas pelos participantes – nas hortas, nos sítios arqueológicos, nas conversas que redesenharam o programa – nos sugerem que habitar um território é também se deixar habitar por ele, em uma coreografia contínua de afetos, resistências e reinvenções. O desafio que permanece é sustentar essa escuta, transformando a em raiz para futuras ações nas quais arte, ecologia e seus praticantes não se pensem apartados, mas como tessituras do mesmo tecido vivo.

Agradecimentos à equipe organizadora da Residência artística Habitar os vínculos, edição 2023/24:
Ana Luiza Braga, coordenadora pedagógica e programática;
Fernanda Ribeiro, coordenadora local;
Valen Baron, produção.
Créditos das imagens neste ensaio: Lara Chang e Valen Baron.
Terra Saúva
É um lugar para produções culturais e experimentais em diálogo com a terra e suas ações criativas para a preservação dos biomas Cerrado e Mata Atlântica. Está situada no Condomínio Ecológico Santa Rita, um projeto em colaboração com 50 famílias no bairro da Demétria, em Botucatu, no interior de São Paulo, ondese convive com o Aquífero Guarani, um grande reservatório subterrâneo de água potável, estratégico para a sobrevivênciadas espécies locais. Em 2023/24, a Terra Saúva abriu pelaprimeira vez uma chamada nacional para 10 propostas de experimentação artística convocando artistas e pesquisadores para uma vivência imersiva de 28 dias num fragmento de Cerrado. O programa é estruturado a partir de uma perspectiva pedagógica, articulando a produção em ateliê com uma série de atividades artístico-pedagógicas, rodas de conversa e laboratórios gratuitos, abertos ao público e o acompanhamento dos trabalhos se dá no cruzamento de agentes e espécies que mantêm a continuidade dos viventes e dos vínculos entre comunidades e territórios.
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