— Lucimélia Romão
Rota de fuga
As portas estão a trancar
Minha cor não é exemplar
Sou um corpo a se disciplinar
Meu gênero deve se anular
De uma forma particular
Começo a articular
Uma rota de fuga
Para a vida cultivar
Com toda cautela
Quebro a tramela
Abro então a janela
E algo se desvela
Não importa a condição
Sempre há uma opção
Tenho hiato na mão,
na alma e no coração
Minha rota é certeira
Abri janelas a vida inteira
Desde que pulei a primeira
Criei rota de fuga ligeira.
– Lucimélia Romão
› Lucimélia Romão, fotoperformance criada a partir da obra MIL LITROS DE PRETO: O Largo Está Cheio, no contexto da 9a Edição da Mostra 3M de Arte no Largo da Batata, em São Paulo (SP).Foto: Partejo
Vemos hoje um destaque nas artes negras e indí- genas que refletem as diversidades e as riquezas das experiências brasileiras. Além disso, tais artes cada vez mais vêm criando espaços para diálogos sobre questões que afetam esses povos, como o racismo, o machismo, a invisibilização e silenciamentos, a violência estatal, entre outras. Desse modo, esses acessos têm sido uma possibilidade de cura social a partir da estética visual, de sensações geradas e mesas de debates que os trabalhos promovem.
Buscando evidenciar a realidade daqueles que sofrem cotidianamente com o racismo e o machismo e abrir espaços para o diálogo e de acolhi- mento, criei as obras MIL LITROS DE PRETO e Para Estancar O Sangue, que também refletem incômo- dos e dores que me atravessam e uma busca por produzir não apenas conhecimento, resistência e transformação social, mas também subjetividades, sensibilidades, afetos e acolhimento.
› Lucimélia Romão, registro da performance instalação MIL LITROS DE PRETO: O Largo Está Cheio,
com participação do Movimento Mães de Maio na 9a Edição da Mostra 3M de Arte no Largo da Batata, em São Paulo (SP). Foto: Partejo
MIL LITROS DE PRETO: A Maré Está Cheia
é uma performance instalação que busca dimensionar o genocídio da população preta, pobre e/ou periférica. Com estreia no ano de 2019 e duração de 59 horas, a obra foi elabo- rada considerando dados estatísticos do Atlas da Violência referentes ao ano de 20171, que evidenciaram que a cada 25 minutos um jovem negro entre 14 e 29 anos de idade foi assassina- do pela polícia, e a média de sangue do corpo de um adulto (7 litros).
A instalação é composta de 144 baldes pretos etiquetados com os nomes das vítimas da vio- lência policial espalhados pelo espaço, cheios com água tingida de vermelho (representan- do o sangue) e uma piscina de plástico de mil litros. Os baldes são dispostos formando uma suástica, o que evidencia o projeto higienis- ta que nossos governantes traçaram e traçam para o Brasil desde o fim da escravidão. A cada 25 minutos um alarme soa, caminho até um corpo-balde, conduzo-o até a borda da piscina, leio o nome, a idade, o gênero e a causa da morte (sempre homicídio policial), despejo o líquido na piscina e depois devolvo o balde ao seu lugar no espaço, porém dessa vez deitado.
› Lucimélia Romão,registro da performance instalaçãoMIL LITROS DE PRETO: O Largo Está Cheio, com participação do Movimento Mães de Maio na 9a Edição da Mostra 3M de Arteno Largo da Batata, em São Paulo (SP).Foto: Partejo
› Lucimélia Romão, registo da performance instalação MIL LITROS DE PRETO: A Maré Está Cheia, com a participação do Coletivo Mães da Periferia no Festival de Performance Imaginários Urbanos em Fortaleza (CE). Foto: Mateus Falcão.
Trata-se de uma ação que transborda e borra as fronteiras entre arte e manifesto, pois a obra diversas vezes contou com a participação do Movimento Mães de Maio2 e com minhas familiares. Essas participações vêm pelo desejo de cura coletiva, momento em que essas mulheres podem dialogar sobre serem mães órfãs e, a partir do encontro cênico, sonhar um futuro possível. No primeiro encontro do coletivo com minhas familiares Maria Lucia de Souza (mãe), Josefa Ambrósio (tia) e Eva Mota (prima), as mães disseram que rezavam por mim e agora iriam rezar pelas minhas parentes também.
Que elas iriam me eleger vereadora, depois deputada e, por fim, presidenta do Brasil, para que essa realidade brasileira extremamente violenta de criar mães órfãs acabe. As mães sonharam juntas um futuro para o Brasil. Em outro momento apresentando a mesma obra em Fortaleza (CE), o coletivo Mães da Periferia relatou a felicidade em participar da performance, pois muitas vezes são proibidas de falar sobre seus filhos assassinados. As pessoas geralmente se afastam por dizer que elas ficaram chatas, não sabem conversar sobre outra coisa, só falam da perda de seus filhos. Muitas vezes, negam a existência daquele jovem, é como se elas tivessem ficado loucas. Assim, o trabalho artístico agiu como um aco- lhimento coletivo para falarem de suas dores e suas angústias em razão da injustiça do Estado. É muito comum, após a apresentação da performance com a participação das mães, os espectadores se manifestarem, e eles ou as mães órfãs pedirem uma oração pela alma das vítimas, e todos nós, de mãos dadas, clamar- mos pelo mesmo propósito: o fim da violência do Estado para corpos dissidentes.
› Lucimélia Romão, Registro da performance instalação MIL LITROS DE PRETO: A Maré Está Cheia, com a participação do Coletivo Mães da Periferia no Festival de Performance Imaginários Urbanos em Fortaleza (CE).
Foto: Mateus Falcão
MIL LITROS DE PRETO é o início de um projeto de vida que venho traçando, em que o trabalho e o cuidado que poderia ser fomentado pelo Estado, torna-se uma estratégia pessoal para a construção da autoestima de mulheres que vivenciam violências do Estado. É importante ressaltar que todas as mulheres com quem trabalho (familiares ou não) recebem pagamento pela apresentação, que é um manifesto artístico mas também um trabalho, então merecem ser remuneradas.
Outro projeto em que reflito sobre a possibilidade de cura da mulher negra e um caminho para a saúde de pessoas negras a partir da estética é a instalação Para Estancar O Sangue. A obra tem como base para sua criação o texto “Em busca dos jardins de nossas mães”, da escritora Alice Walker, que questiona o lugar da mulher negra na sociedade colonial, além de uma continuidade estética e conceitual das obras Mulher de Pau — performance e fotoperformance —, também de minha autoria.
Estas últimas estabelecem uma relação entre a mulher negra e a colher de pau. A mulher preta serve para exercer trabalhos precarizados ou ser objeto sexual, mas não para cargos de poder ou ser esposa. Como afirmam Musatti-Braga e Rosa (2018), ela é “imaginada em posição servil, efeito de um discurso social que visa à manutenção das relações coloniais de poder”. Já a colher de pau é um elemento característico das culturas africanas e indígenas, excluído da cozinha industrial por ser de madeira e um caminho para bactérias, mas que possibilita uma comida saborosa, e todo brasileiro tem ao menos uma em casa.
A instalação é composta de 100 colheres de pau de tamanhos e tonalidades distintas suspensas apenas por dois pregos e fitas, formando um painel não linear de 2 metros de largura por 4 metros de altura. Esses objetos vêm sendo colecionados há seis anos pela artista, que busca refletir sobre as fraturas existentes na historio- grafia da arte, na qual a mulher negra nunca apareceu como agente de si, sempre foi invisível, exceto como objeto, e colocada como louca na sociedade. Uma confluência entre a mulher negra e a colher de pau, uma peça de carne e um pedaço de pau, ambos marginalizados, mas que vieram para vos servir. PARA ESTANCAR O SANGUE questiona o lugar da mulher negra na sociedade e principalmente a mulher negra artista, que, quando tinha pulsão artística, era cerceada e tratada como louca.
A instalação faz uma homenagem a milhares de mulheres negras artistas que durante séculos foram impedidas de vivenciar sua arte e impos- sibilitadas de ter saúde mental. A arte em geral, mesmo a mais subjetiva e abs- trata, possui um enorme poder visual, no qual podemos nos expressar e proporcionar ao espectador um acolhimento para suas dores. PARA ESTANCAR O SANGUE utiliza um ele- mento cotidiano e de fácil identificação como a colher de pau para estabelecer uma relação de cuidado para com o público. Dessa forma, esse projeto traz um conforto estético, poético e visual para quem se coloca diante dele. Nas diversas vezes que esse trabalho esteve exposto, mulheres que trabalham nos serviços gerais dos espaços vieram dialogar comigo sobre a obra.
Desse modo, ambas as obras propiciam espaços para o diálogo. Uma vez que meus trabalhos têm uma dimensão sociopolítica, compreendendo que as artes negras não existem sem o entendimento da condição da população preta no Brasil. Quando o povo negro não ocupa cargos de poder na educação, na política ou na saúde, é porque a sociedade não conseguiu fabular esse imaginário, e eis que as artes precisam possibilitar esses acessos. Nesses dois projetos comprometidos com a transformação social, apresento duas estratégias estruturais brasileiras que adoecem e eliminam direta e indiretamente a população negra: a injustiça e a invisibilidade. Assim, procuro criar fissuras na estrutura hegemônica e planto possibilidades de um futuro melhor para corpos dissidentes.
› Lucimélia Romão, instalação Para Estancar O Sangue,na 33a Edição do Programa de Exposições CCSP, em São Paulo (SP). Foto: Lucimélia Romão
NOTAS
1 Nos dados atuais do Atlas da Violência de 2023,a cada 15 minutos um jovem preto, pobre e/ou periférico é assassinado pelo Estado Democrático de Direito, então a ação teria o tempo real de 36 horas. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/publicacoes.
2 O Movimento Mães Maio é uma rede de mães, familiares e amigos de vítimas da violência estatal no Brasil que surgiu em 2006, após o governo do estado de São Paulo matar em oito dias mais de 564 jovens nas periferias da capital e de Santos (SP).
Lucimélia Romão
Lucimélia Romão vive entre Jacareí (SP) e São João del-Rei (MG), é artista visual, dramaturga e performer. Mestranda em Artes da Cena e Mediação Cultural pela Escola Superior de Artes Célia Helena (SP), pós-graduada em Artes pela Universidade Federal de Pelotas (RS), graduada em Teatro pela Universidade Federal de São João del-Rei (MG), é atriz formada no curso técnico em Teatro pela Escola Municipal de Artes Maestro Fêgo Camargo em Taubaté (SP).
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