Educar Ancestral: a arte de viver vem da Terra
- latenterevista
- Aug 4
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— Gizele Juá Erã
Mulher originária do sertão nordestino habitante do interior de São Paulo, Gizele faz uma rememoração da caminhada educacional e artística da iniciativa Educar Ancestral, movimento que compartilha com Neny Luá – mulher originária do Pará também residente em São José do Rio Preto – e outras pessoas educadoras e artistas de pertencimento indígena.

Existem muitas formas devida e de viver nessa nossa Dé Raddá (1).
No idioma ancestral da Nação Kariri, vida é Ybá.
A Educar Ancestral é uma iniciativa que surgiu de educadoras indígenas preocupadas em resgatar e oportunizar vivências que valorizam a arte de viver em consonância com a ancestralidade dos povos tradicionais em suas manifestações artísticas, culturais, educacionais e ambientais. No Noroeste Paulista, desenhamos em conjunto, crianças, jovens e adultos, a necessidade de nos percebermos como artistas e cientistas dessa terra.
Não é de espantar ninguém afirmar que, sem esse íntimo relacionamento com a terra, não viveremos. E assim, em meio a sementes, instrumentos musicais, tecidos, histórias, plantas, frutas e animais, nós criamos as ações da nossa Coletiva Educar Ancestral, que vem ensinar – ou melhor, rememorar –, os nomes e as fabulosidades do que nós chamamos de fauna, flora e povos indígenas dos diferentes territórios do Brasil. Buscamos quebrar preconceitos e estereótipos e deixar evidente quanto é incrível e necessário ser filho dessa, nossa Dé Raddá.
Quando é que vamos deixar de pensara questão indígena como algo fantasticamente isolado de todos os outros contextos sociais? São perguntas como essas que tencionamos em movimentos como o nosso, que se propõe a rasgar o véu da invisibilidade imposta aos nossos povos há 525 anos.Foi assim que eu conheci Neny Luá, indígena da Nação Mi’barayo, criada na Ilha de Marajó e hoje também residente em Rio Preto. Nós nos reconhecemos em uma manifestação de rua ao final de 2020, lutando contra o PL490 que se transformou na Lei do Marco Temporal (14.701/2023) e identificamos quanto tínhamos coisas em comum e como temos contribuições importantes a serem compartilhadas no território em que vivemos.
Nós, mulheres, indígenas, professoras e artistas, desafiamos a lógica ocidental de conhecimento e propomos educar ancestralmente, pois não acreditamos neste discurso científico-técnico-informacional que destrói territórios e aliena o conhecimento geracional sobre os espaços de vivência em que estamos. Como é possível estarmos no Sudeste e não sabermos mais o que é um pé de jacarandá? Não, isso não está certo.
Nesse contexto, surge Akauã: cantos e encantos de brincar, que agora é Akauã em movimento: vivências do saber ancestral para a infância, um projeto cheio de significadose linguagens que conectam diferentes pessoas ao brincar, articizar e, conviver ancestral.
Akauã é uma espécie de gavião presente em todo o território brasileiro. Mesmo sendo menor do que outras espécies de gavião, ele é muito esperto, observador e caçador. Fazemos a analogia de Akauã com os kamurins– crianças –, que, mesmo em tamanho reduzido, possuem muitas habilidades artísticas e científicas que são estimuladas nas estações de brincadeira do projeto.
É ao conhecer a dança do pássaro Akauã – do povo Kariri Xocó (AL) –, ao brincar de peteca, ao ouvir e ler histórias indígenas, ao pintar com tintas naturais e ao realizar diversas possibilidades de modelagem em argila que crianças, jovens e famílias percebem uma curiosa possibilidade quase esquecida: não precisamos fabricar nem comprar para ter uma vivência de qualidade, pois tudo que precisamos é disponibilizado pela Dé Raddá, que ainda se encarrega de trazer uma diversidade de possibilidades, de acordo com o tempo de cada época, suas estações, seus frutos e suas cores.
E dessa forma fluida em viver, Akauãnos rende diferentes depoimento se lembranças gostosas de ouvir, como: “Esta semente tem lá perto de casa!”,“A minha bisavó era indígena, e eu gostaria de conhecer mais sobre essa história”, sendo oportunidade de novas perguntas, como: “Você sabe o nome dessa sua bisavó? De onde ela era? Como será que era a sua vida? Você tem alguém na sua família que sabe mais sobre ela? Já pensou em pegar essas sementes perto da sua casa e fazer arte com elas? Sabia que o jacarandá é a árvore que anuncia a chegada do AnoNovo Tupiguarani? Sabia que com urucum, jenipapo, açafrão e outras plantas conseguimos fazer poderosas tintas? É bem emocionante fazer parte desses acontecimentos de Akauã.

Também saem desses encontros coisas surpreendentes que nos fazem perceber quanto a Arte é mais que mímesis, expressão ou imitação, é simplesmente o próprio Viver em Movimento, sendo manifestado Aqui e Agora. Akauã, akauã vive cantando no sertão. Não só no verão nem só chamando a seca, como disse nosso velho amigo2 Luiz Gonzaga.
Akauã também desperta em nós a curiosidade desde pequenininhos para continuarmos sendo verdadeiros manifestadores da vida e suas múltiplas possibilidades de diversão, investigação e realização. E por isso, nesse projeto, as crianças são comparadas ao próprio Akauã: por sua sabedoria, sua destreza e seu olhar atento para a caça acontecer.
Nossas formações e nossas vivências versam por caminhos da rememoração e dos conhecimentos geracionais trazidos por nossas famílias indígenas e pela valorização dos conhecimentos territoriais dos espaços em que estamos inseridas. Nós aprendemos e formulamos conhecimentos com as comunidades e as populações indígenas da nossa região e da nossa nação, bem como utilizamos os conhecimentos adquiridos em nossas formações acadêmicas, priorizando as discussões teórico-metodológicas decoloniais e de protagonismo indígena de Abya Yala (América).
No meio de toda essa ânsia em demarcar nosso viver ancestral, também surgiu a Mostra Educar Ancestral. Sua primeira edição ocorreu nos dias 20, 21 e 22 de março de 2024, com o tema “para uma educação antirracista e diversa”. O evento reuniu na Unesp de Rio Preto encontros em formatos de palestra, oficinas e mesas de sabedoria com pessoas indígenas que falavam sobre política, educação, cultura e arte em perspectivas regionais e nacionais.Foi uma reunião importante em muitos sentidos, principalmente porque demarcou o protagonismo indígena na produção do conhecimento de seus próprios saberes em espaços institucionais formalizados e reconhecidos socialmente de forma ampla e consistente ao longo da história.
Estivemos com pessoas que são referência para nós e para todo o movimento indígena, como a professora doutora Niminon Suzel Pinheiro, Idiane Kariri Xocó e Kawrã Florêncio.
Esperamos que, entre 2025 e 2026, possamos realizar a II Mostra Educar Ancestral para celebrar nossos conhecimentos e fortalecer nossas lutas dentro dessa região tão ancestral como é o interior paulista, terras originalmente guaranis, kaingangs, oitis, mas também terenas, kariris, huni kuins e de todas as nossas nações indígenas em suas constantes diásporas, migrações e movimentações diversas. A cidade também é terra indígena.

Entre Akauã e outras propostas, a Educar Ancestral sonha em ser Casa Ancestral, um espaço para manifestar de forma fixa todos esses trabalhos que já estão em andamento hoje de forma itinerante. Um espaço para celebrar nossas culturas ancestrais, receber nossos parentes e acolher crianças, jovens e adultos de Rio Preto e região, como projeto educacional e de apoio à comunidade com ações de contraturno escolar. Buscamos o incentivo de pessoas e instituições que compreendam a importância da Educar Ancestral e agradecemos imensamente a possibilidade de fazer parte desta edição da Revista Latente, que, além de fazer um trabalho tão importante de visibilidade das nossas poderosas ações nos interiores e litorais deSão Paulo, traz nesta edição a ênfase temática na relação indissociável entre arte e educação.E com base em nossos conhecimentos, temos certeza de que não se educa sem arte.
São Paulo, interiores e litorais são terras indígenas, de povos piratiningas, caiçaras e caboclos. É preciso lembrar e retomar essas origens em suas manifestações artístico-culturais e científicas, de forma que voltemos a reconhecer nossas histórias e nossos territórios, respeitando suas particularidades, seus tempos e seus povos. Ybá sabedoria nativa! Ybá Educar Ancestral! Ybá nossa Casa Ancestral, nossa Dé Raddá e todos os seres que nela convivem.

NOTAS
Dé Raddá significa “Mãe Terra” no idioma Dzubukuá-Kipeá da Nação Kariri.
Uma inspiração para nós é “Akauã”, música de Luiz Gonzaga que traz um depoimento de como esse pássaro está intimamente ligado a narrativas ancestrais e territoriais do sertão nordestino e indígena.
* Todas as imagens pertencem ao acervo pessoal da autora
Gizele Juá Erã
Socióloga formada pela Unesp Marília e professora da rede estadual de ensino, faz parte do povo Kixelôe da grande Nação Kariri indígena do Nordeste. Possui a iniciativa Educar Ancestral, que leva para toda a região de Rio Preto vivências significativas que rememoram nossos territórios e nossas formas indígenas de viver.
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