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Feridas: instalar, sentir, transformar – a escola como território de criação e reflexão

  • latenterevista
  • Aug 4
  • 6 min read

Paulo Lorenzeti


“Habitar ruínas, vale-se de despojos, gestar acontecimentos inéditos a partir deles” –Julio Groppa Aquino



No primeiro ano do Ensino Médio da escola Sesi Araraquara, os estudantes iniciam um aprofundamento dos conteúdos abordados durante o Ensino Fundamental.


A primeira temática investigada foi a arte contemporânea e seu campo ampliado de linguagens, concepções, materialidades e ações. Um grande desafio, considerando que muitos estudantes ainda mantêm uma concepção de arte fortemente ligada às técnicas de desenho e pintura naturalista – mesmo tendo vivenciado, apreciado e refletido sobre arte contemporânea em anos anteriores. É interessante notar como persiste certo descrédito em relação às formas “não tradicionais” da arte contemporânea, como se grande parte de suas manifestações não pudesse ser considerada arte.


Acredito que alguns fatores contribuem para essa visão: primeiramente, a falta de contato com essas expressões fora do ambiente escolar, como visitas a exposições ou a espaços onde essa produção esteja mais presente. Soma-­se a isso o contexto cultural familiar, no qual a arte contemporânea muitas vezes está distante do imaginário mais comum sobre o que pode ou não ser considerado arte.



Diante disso, busco aproximar a arte contemporânea dos estudantes equilibrando teoria e prática deforma lúdica e reflexiva, valorizando a seriedade que envolve a produção atual e sua força expressiva. Para isso, iniciamos a construção conjunta deu ma linha do tempo da história da arte, considerando os conhecimentos prévios da turma e destacando os principais fatores contextuais de cada período. Dividimos a linha do tempo em arte antiga, moderna e pós-­moderna.

Esse recurso visual e conceitual ajudou muito na compreensão das transformações históricas e das principais características de cada momento. Em seguida, elaboramos um mapa conceitual sobre a arte contemporânea, abordando seu campo expandido em termos de linguagens, materialidades, poéticas e ações.


Para aprofundar o estudo, focamos linguagens consolidadas como a instalação, a performance, a arte conceitual e a body art. Trabalhamos com textos curtos, apreciação de imagens e vídeos, além de exercícios práticos e experimentais de criação. Esses exercícios permitiram aos estudantes não apenas conhecer, mas se apropriar dessas formas de expressão. Nosso repertório de apreciação incluiu obras de artistas como Priscila Rezende, Regina Silveira, Adriana Varejão,Paulo Nazareth e Henrique Oliveira. Este último foi nossa principal referência para a elaboração de um trabalho coletivo de instalação que exigiu mais tempo, dedicação e envolvimento

da turma – e que mais tarde ficou conhecido como “Feridas”. A escolha por Henrique Oliveira se deu por dois fatores.


O primeiro foi uma visita que fiz à instalação Transarquitetônica, no MAC USP, em 2015 – uma experiência arrebatadora de imersão nos espaços criados pelo artista. Essa vivência me fez refletir sobre o potencial da instalação como ferramenta para desenvolver conceitos centrais da arte contemporânea:a ação ativa do espectador, a sinestesia (o corpo inteiro envolvido na apreciação), a transformação do tempo e espaço, o estranhamento e a reflexão crítica sobre o cotidiano, o passado, o presente e o futuro.


O segundo fator foi a coleta de material descartado durante uma reforma na escola. Tenho por hábito recolher materiais com potencial artístico, mesmo sem saber seu destino imediato.

As lascas de madeirite encontradas nesse período me remeteram imediatamente à obra de Henrique Oliveira e despertaram a vontade de experimentá-­las com os estudantes.


Paulo Lorenzeti
Fragmentos de madeirites coletados pelo professor nas reformas da escola

Com a turma dividida em grupos, a proposta era construir o efeito de buracos nas paredes da escola, como se elas estivessem se rompendo e ocupando o espaço, inspiradas em algumas instalações menores do artista. Os desafios iniciais foram técnicos: era preciso entender o comportamento do madeirite. Sugeri a construção de alvéolos a partir do envergamento e da junção das lascas de madeira. Contudo, a pressão exigida para manter os fragmentos unidos era grande, e os recursos de cola quente e arame não foram suficientes.Foi então que um estudante mencionou um documentário em que o artista usava grampeadores de pressão –e esse recurso foi o que nos salvou. Aproveitei esse momento para convidar os estudantes a observar o ambiente do ateliê escolar, repleto de materiais e ferramentas além dos tradicionais papéis, pincéis e tintas, ampliando suas percepções sobre materialidade e poética.


Com os alvéolos prontos, fixamos as estruturas nas paredes, amarrando ­as com arame preso a pequenos parafusos. O novo desafio era criar um acabamento que fizesse parecer que os buracos faziam parte da parede. Inicialmente, utilizamos pedaços de papelão colados com fita

de silicone e pintados com látex branco, mas o resultado não agradou. Optamos então por aplicar uma nova camada com papéis sulfite rasgados, o que gerou um efeito visual mais interessante. Uma dificuldade extra foi manter os trabalhos em andamento “escondidos” dos demais estudantes da escola, para preservar o impacto da obra final.


Como tínhamos apenas duas aulas semanais e enfrentamos muitos obstáculos técnicos, não era possível concluir tudo em um único período. Como solução, entre uma semana

e outra, cobríamos os trabalhos com TNT preto e colocávamos plaquinhas com os dizeres “Trabalho em processo”. A estratégia funcionou bem e gerou grande expectativa

na comunidade escolar. Durante o processo de elaboração, eu andava um pouco insatisfeito com a proposta mais conceitual do trabalho, pois tratava­-se apenas de criar o efeito de buracos nas paredes, intervindo no espaço escolar.


Paulo Lorenzeti
Processo inicial de montagem dos alvéolos - ateliê da escola


Até que, em conversa com os estudantes, surgiu a ideia de pensar cada trabalho como uma espécie de “ferida”, e a parede, então, passou a ser compreendida como uma espécie de pele da arquitetura.

Cada “ferida” corresponderia a uma questão problemática vivenciada na escola e na sociedade – como o racismo, o bullying, o capacitismo, entre outras – e que, de tão intensas, estariam latentes, como uma “ferida aberta”.


A partir desse momento, cada grupo elegeu um tema e elaborou uma proposta de intervenção nas fissuras, inserindo elementos simbólicos que dessem sentido à ferida, representando visualmente o problema escolhido. Para isso, desenvolveram memoriais descritivos, nos quais apontaram os conceitos e os materiais necessários à realização. Foi um momento importante de discussão, sobretudo a respeito das qualidades expressivas dos materiais escolhidos e sua capacidade de comunicar o que desejavam. Acompanhei de perto cada grupo, compreendendo os motivos de suas criações, e pude notar o amadurecimento dos debates e das ideias sobre os temas e a execução das obras em si.



Paulo Lorenzeti
Ferida VI: Capacitismo – Uma espécie de monstro que expele palavras capacitistas diretamente no lixo, movido por uma necessidade urgente de descartar essa prática

“[...] A nossa ferida traz consigo uma crítica ao racismo estrutural dentro da escola. Dentro da instalação há páginas e livros de história geral e de povos africanos manchados com uma tinta branca que escorre do seu interior, representando o apagamento da cultura afro e a distorção da história que é transmitida na escola sob uma óptica eurocêntrica. Em meio a tudo isso, há um pequeno galho seco retorcido simbolizando o movimento antirracista, com uma pequena bandeira em uma das pontas com o provérbio africano “A erva seca incendiará a erva úmida”, ou seja, conhecimentos antes negados agora se tornam potências de reflexões.


Como demonstra um fragmento do memorial descritivo de um dos grupos: Os estudantes demonstraram satisfação com os resultados e estavam ávidos pela apreciação da comunidade escolar. Como proposta avaliativa final, cada grupo elaborou uma apresentação do trabalho para a turma. Fazendo o papel de educadores, como em uma exposição, deveriam convidar o público/turma a refletir sobre a obra, demonstrando conceitos sobre arte contemporânea,

a linguagem da instalação e o tema específico abordado no trabalho.


Foi uma experiência potente que trouxe diversas evidências das aprendizagens adquiridas ao longo dos processos de construção dos conhecimentos em arte – tanto os teóricos quanto os práticos. Um destaque foi a defesa que cada grupo teve de fazer ao serem questionados se aqueles trabalhos seriam arte. As respostas foram positivas e convictas, com justificativas pautadas em argumentos coerentes e significativos. Com relação aos temas das “feridas”, tratou­-se de uma oportunidade ímpar de dar voz aos estudantes e de refletir, por meio da linguagem artística, sobre problemáticas urgentes da vida escolar e social.


Ao transformar dor em expressão e escuta em criação, construímos, juntos, possibilidades simbólicas de cura. Essa experiência reafirma o papel essencial da arte na escola como campo de construção de sentidos, de escuta ativa e de elaboração crítica sobre a realidade. Ao se apropriarem das linguagens da arte contemporânea, os estudantes puderam exercitar a reflexão, a criatividade e a autonomia intelectual, ressignificando materiais, espaços e vivências. Mais que resultados visuais, a instalação “Feridas” revelou processos formativos potentes, capazes de mobilizar afetos, provocar debates e gerar pertencimento. Em tempos de urgência por escuta e reconstrução, a arte mostrou-­se, mais uma vez, ferramenta viva de transformação – estética, simbólica e social.


Paulo Lorenzeti


* Todas as imagens pertencem ao acervo pessoal do autor

* Epígrafe:AQUINO, Julio Groppa. Instantâneos da escola contemporânea. Campinas: Papirus, 2007.



Paulo Lorenzeti


É arte educador com formação em Artes Visuais pela antiga FATEA, Santo André, ABC Paulista. Pós-graduado em Linguagens da Arte, pelo Centro Universitário Maria Antônia- USP e em Música e Movimento pela UFSCar. Ao longo de seus 14 anos de experiência, na área da educação, vem desenvolvendo trabalhos e processos criativos individuais e coletivos, em múltiplas linguagens artísticas, com crianças e adolescentes em espaços formais, como escola regulares, atuando como arte-educador em todos os níveis de ensino, bem como não-formais, como o Sesc, promovendo oficinas nos projetos Sócio Educativos, como Juventudes, Curumim e Espaço de Brincar. Trabalhou também na elaboração de materiais didáticos como na 32a Bienal Internacional de São Paulo (2016) e para o Projeto GRUDA (2022), entre outros. Nos últimos anos, tem se dedicado à formação de professores, ministrando palestras em diversos espaços educativos. Em 2014, foi vencedor do prêmio Arte na Escola Cidadã, na categoria Fund I, pelo Instituto Arte na Escola.

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