— Carolina Sudati a.k.a. Translúcida Bruta
Eu queria dançar plantando
sem pensar que havia um antes
no encontro com essa terra que degradei
/// MEMÓRIA
Em fevereiro de 2020 eu estava em Serra Pelada. Era a visita técnica para uma possível segunda etapa do projeto Perfeita e a Corrida do Ouro, que estava acontecendo na cidade de Jacundá, no Pará, onde fui estudar o corpo e a memória do garimpo. A complexidade da mineração, especialmente no âmbito do entorno social e das inúmeras estratégias de apagamento ficaram evidentes.
E foi ali, em Serra Pelada, que Ex-Babilônias foi sonhado. Foi no encontro com Rosa Freitas, liderança da Associação das Mulheres Aliadas de Serra Pelada (AMASP), que palavras férteis, abraços afetuosos e a força do intento <<contaminaram meu corpo>> com a possibilidade de dançar um plantio em uma área degradada. Eu ainda não sabia do impacto da pandemia de covid-19. Três anos de intencionalida- des e tentativas de financiamento para voltar à Serra Pelada somadas a inúmeras conversas, o desafio de ativar o plantio de alimentos em uma terra com mercúrio, o impacto na água, na terra, na subjetividade. O fascínio daquele território em contraste com os abandonos e as ruínas. Em contraste com os meus privi- légios. Em contraste com as amizades que fiz. Em contraste com precisar do metal × desejar negar o garimpo. Em contraste com precisar do garimpo × lembrar as mortes, lembrar os sonhos, delírios e confusões. E então, olhar para o meu quintal. Meu quintal devastado.
Olhar para meu quintal de afetos e meus pares artistas. Cogitar o fato de que eu não estaria fazendo o suficiente. Que reivindicar e denunciar não é o bastante. E o imediato desejo de
começar. <<Plantar & Dançar>> aqui, ao meu redor, nesse trânsito entre a selva de pedra //
São Paulo e a herança das selvas desbastadas que rodeiam São Paulo // Região Bragantina.
E assim Ex-Babilônias é, agora, o prólogo do plantio.
› Carolina Sudati a.k.a. Translúcida Bruta
Ex-Babilônias: prólogo de um plantio
© Martin Zenorini, Translúcida Bruta 2023
Território #4: 22°99 '28.8 "S 46°43'89.5"W
- Fazenda Serrinha Paralela Casa Lebre.
Festival Arte Serrinha, 2023.
› Limites da Represa do Jaguari (cidades de Piracaia, Bragança Paulista, Vargem e Joanópolis, SP)
// DISPOSITIVOS CORPO>TERRA
Ex-Babilônias: prólogo de um plantio é uma dança espaçada no tempo pelas distâncias entre os territórios que a recebe. Ela pulsa no interesse em práticas de plantio para/em áreas degradadas onde a conexão do corpo com a terra se dá através do desenvolvimento de dispositivos vestíveis que atuam como extensões corporais. Chamados aqui de DISPOSITIVOS CORPO >TERRA, estas próteses são tecnologias que instauram técnicas (de mobilidade), com parâmetros específicos de movimento que permitem que a investigação resulte em uma situação coreográfica. No que tenho chamado de <<danças com vestíveis brutos>>, as manifestações do corpo sutil e as práticas de movimento manifestam-se no diálogo com as materialidades. E esses materiais são aglutinadores da experiência em território.
› Carolina Sudati a.k.a. Translúcida Bruta
Ex-Babilônias: prólogo de um plantio
© Translúcida Bruta, 2024
Estudos para próteses corpo-terra
Este <<corpo>> sonha a sua extensão. Numa apropriação da ferramenta como um extensor, esse dispositivo amplia o corpo de acordo com o seu desejo. E, ao ampliar-se, passa a experimentar o mundo com essa nova forma. Dançar com esses dispositivos como aliados é uma possibilidade de escutar as necessidades sutis dessa terra. A produção dos dispositivos, por mim mesma como artista – e de cada pessoa que chega a um grupo, permite incorporar as memórias ancestrais diretas (de agricultores europeus, no meu caso) e ampliar, de forma crítica e política, novas práticas de mover corpo-terra. Essas novas práticas envolvem me perguntar de onde vêm os desejos, gestos e mecanismos que crio. E quão mecânicos eles precisam ser. E quão orgânicos eles podem ser. E quão invisíveis eles são e podem ser ainda mais. Essas perguntas me levam a agregar aos ensinamentos da minha avó e do meu pai o estudo do ecofeminismo de Vandana Shiva, as ações do povo Ashaninka com Benki Piyãko no Brasil e o ativismo da boliviana Trígida Jiménez.
› Carolina Sudati a.k.a. Translúcida Bruta
Ex-Babilônias: prólogo de um plantio
© Martin Zenorini, Translúcida Bruta 2023
Território 2 > 23°03'01.1"S 46°23'01.0"W
› Carolina Sudati a.k.a. Translúcida Bruta
Ex-Babilônias: prólogo de um plantio
© Translúcida Bruta 2023A prótese primeira
› Carolina Sudati a.k.a. Translúcida Bruta
Ex-Babilônias: prólogo de um plantio
© Martin Zenorini, Translúcida Bruta 2023
Território 2 > 23°03'01.1"S 46°23'01.0"W
/// OUVIR O SILÊNCIO MINERAL ...
... ou converter-se em medicina para a terra?
Na preparação desse “prólogo do plantio” tive uma importante conversa-provocação com Rodolfo Opazo, em que ele me apresentou o texto de Marie Bardet “Hacer mundos con gestos”. Em nossa deriva delirante de palavras que mudam corpos, ele me disse algo como: “Talvez esta terra [de Serra Pelada] não queira ser plantada. E talvez tudo o que essa terra precise neste momento seja, por exemplo, um grande ferro sendo colocado sobre seu solo”. Silêncio. Desenvolver mecanismos de escuta dessa terra passou a ser uma ação. E incorporar objetos sensíveis como plumas ou objetos que poderiam pausar transformou-se em um ato. <<Ouvir o silêncio mineral>> foi a necessidade que emergiu de meu encontro com as ruínas do antigo garimpo manual de Serra Pelada. Só se sabe o que é estando lá. Com todo aquele mineral abaixo do solo, o mineral extraído, a devastação e a regeneração. Escutar.
› Carolina Sudati a.k.a. Translúcida Bruta
Ex-Babilônias: prólogo de um plantio
© Translúcida Bruta 2023Margem da Represa do Jaguari .
Piracaia Território 0: 23°00'43.6 "S 46°24'20.3"W
//
O dispositivo é um aliado imprescindível. Pois na evocação do campo sutil ele atua como um integrador das possibilidades visualizadas com a realidade manifestada na matéria. Ele ancora para que eu e todas as pessoas que estão nesta dança possam agir regenerativamente. E, principalmente, possam transitar entre VER e AGIR.
Como se encontra o corpo com esse dispositivo? Em contato com a terra, o corpo entra em um estado diverso do laboratório, do estúdio. Assim, movimentos inerentes ao plantio manual de agro- florestistas, agricultores, dançarines de rituais ancestrais de devoção à terra (maracatu rural, por exemplo) podem ser hackeados. E proponho executar um hackeamento dos gestos do plantio, em que hackear é identificar a essência gestual e incorporar os seus códigos para operá-los com alterações que os ficcionalizam. A prática dos movimentos hackeados em repetição músico-corporal colabora na busca por um estado de percepção ampliada, e o protocolo de mobilidade é adotado como uma atitude para sonhar novos futuros para/em terras degradadas.
/// COMO SAIR DO PRÓLOGO?
Agora o que acontece se ao dançar percebo que posso e quero ser medicina para essa terra plantando-a? A ficção pode colaborar com a sustentação desse campo até que a realidade se manifeste? E se eu puder criar uma ficção coletiva, ela poderá se tornar uma realidade coletiva? Devolver o suor para a terra. Dançando.
Devolver o suor para a terra. Plantando.
Formigas. Canos encobertos. Metais. Cacos de vidro.
Terra sedimentada. Braquiárias.
Minhocas. Cupins. Sementes não brotadas.
Mudas de árvores grandes. Erosão.
Cansaço.
E de repente, o vento. O vento balançando o meu cabelo.
O vento tocando a minha pele.
Desejo de água. Sensação de deserto. Calor.
Cheiro de terra molhada.
Cheiro de folhas de algumas árvores frutíferas.
Cheiro de esterco. Brisa. Barulho de milharal.
//
Eu pensava em criar dispositivos de bambu que pudessem ser enterrados após a dança e decompor. A terra me pediu metal. Iniciei essa dança com 45 dias de febre. E a terra abaixo de mim também fervia. A febre passou durante uma poda coletiva na Fazenda Serrinha, que está em processo de regeneração há 25 anos.
Esse é um texto mas também um convite:
A estar junto e poder ativar esses territórios, como se esta babilônia que vivemos, com suas distrações e ilusões, já tivesse desabado e ficado no passado.
É essa a ficção que estamos criando. E nela, o futuro porta as memórias do que passou com sabedoria e distinção. E cultiva constantemente o sonhar com os próximos passos. Ex-Babilônias está gerando um mapa de terras em ativação. Prólogos e plantios. Desejos dançados que estão se transformando em danças coletivas enquanto você lê este texto.
E essas danças para e no território cultivamo intento de que possamos saltar para a colheita.
Convido você a entrar nesse mapa.
Para Glaucia
Ex-Babilônias: prólogo de um plantio está em desenvolvimento
Provocações: Leo Ceolin e Rodolgo Opazo
Imagens: Martin Zenorini
Interlocuções: Marcelo Delduque e Rafael Lama – Lab da Terra. Fazenda Serrinha
Anna Cecilia Junqueira e Carolina Hanashiro – encontro
Regenerando a Cidade, Residência Ciclos e Fluxos. Vila Itororó
Cristian Espinosa. Diálogo para a plataforma Território Específico
Juli Lima, Veridiana Aleixo e Helena Ruschel.
Financiamento da ONG Finac em 2023.
Paralela da Casa Lebre 2023 + Festival Arte Serrinha
Participa da Residência Artística Matsutake com Núcleo Cinematográfico de Dança.
Apoio: Casa Lebre, Fazenda Serrinha, Festival Arte Serrinha, Vila Itororó.
Agradecimentos: Rosa Freitas, Almir e Etevaldo Arantes, Chico Lacerda e Clóvis de Oliveira
› Perfeita e a Corrida do Ouro
© Mayra Azzi, Translúcida /Bruta, 2020 /concepção geralCarolina Sudati aka Translúcida /Bruta.
/artistas associadxsLeo Ceolin . Jose Bárrcikelo . Mayra Azzi
/ em uma co-criação com os artistas locais: Clara Barbosa . Dayane Santana . Eslany Fernandes . Ingrid Loo’h . Janielly de Souza Rodrigues . Jakeline Procópio de Souza . Janildo Moura Rodrigues . João Pedro Brito Lima . Kayllane Pedroso Rodrigues . Kairys . Mylena Souza . Silvaney da Gincana . Thaiky Lorrane.
/ participações especiais de:Adriano Show . Elwys Barbosacoreógrafo Roberto Campos e a Quadrilha Junina Tradição.
/ depoimentos & histórias de:Leoeze Nunes Martins . Raimundo Rodrigues dos Santos. Claudionor Gomes da Silveira . Carlão Publicidade
/ artesãos locais:Lucas Lima /Selaria Mineira 2 . Isaias Luiz / Serralheria . José Rodrigues/ Ferraria
/ rede local:Integração: Aldson Reis (articulação local) . Vanilda Bravin (acolhimento) .Zum Filmes do Brasil (apoio operacional)
Logística: Ed Alves . Henrique Brito . Sione Guimarães de Carvalho (transportes) Materiais: Ferro Velho do Ceará
APOIO: Vidraçaria JR e Escola de Música Acordes
PARCERIA: Museu Histórico de Jacundá, Praça CEU, SECULT, SEMED, SEMAS, Prefeitura de Jacundá.
REALIZAÇÃO: FUNARTE.* Perfeita e a Corrida do Ouro: uma imersão no corpo e na memória do garimpo – da sobrevivência ao cuidado ambiental foi contemplado com a Bolsa FUNARTE de Residência Artística nas Estações Cidadania
› Carolina Sudati a.k.a. Translúcida BrutaO cheio da madeira morta em Bruto Drama© Pats Roberts, Translúcida /Bruta. 2022 Parte de uma Combustivel Série Laboratório de Dança com Vestíveis Brutos Oficina CulturalOswald de Andrade
› Carolina Sudati a.k.a. Translúcida Bruta
A Supermarionete
© Mayra Azzi, Translúcida /Bruta, 2017/2018.Dispositivos de madeira e metalProjeto SUCESSO estudo para o fracasso, ACCC - Associação Cultural Casa das Caldeiras.
› Carolina Sudati a.k.a. Translúcida Bruta
Experimento Cyborg Mulher-Planta-Máquina
© Mayra Azzi, Translúcida /Bruta. 2018
Projeto wu-wei / Crise Série de próteses orgânico-industriais para a abertura do Obras em Construção, Programa de Residência Artística e de Pesquisa da ACCC - Associação Cultural Casa das Caldeiras, Tempo Forte 2018, São Paulo, Brasil. Prótese: Ferramenta para adentrara matéria (madeira com plantas epífitas, barras roscadas soldadas, arruelas, porcas e parafusos).
› Carolina Sudati a.k.a. Translúcida Bruta
Ave ou Penas
© Jp-Accaccio, Translúcida /Bruta, 2017/2018.Cabo de aço, presilhas,tecido, pedras e plumas
Maratona de Performance Da Haus, 2017.
Carolina Sudati a.k.a. Translúcida Bruta
Investiga a relação entre corpo e dispositivos vestíveis, convertendo limitações psico-emocionais em expansões de movimento, investigando constantemente as rupturas e a reconexão com o ritmo e o entorno natural na intersecção território. prótese.corpo. Cria performances-instalações, dispositivos e videos, junto a artistxs associadxs em diferentes fomentos e contextos. Dedica-se cada vez mais ao estudo das ecologias obscuras que emergiu de processos de hackeamento vegetal e manifestações matéricas ligadas ao minério, neoextrativismo e ao pós-industrialismo. Investiga por meios artísticos com parâmetros específicos que incluem práticas de transe e expansão da consciência. Compartilha seus processos através de laboratórios que partem do levantamento do campo sutil de coletivos e comunidades convertidos em manufaturas de vestíveis brutos, gerando danças e ações performativas.
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