— Mirella Mostoni
Adúlteras, 2012-2024 (em andamento)
Quem colocará flores em você no ano que vem? Eu ou o outro?
Mellors, o guarda-caça, amante de Lady Chatterley (1928)
› Mirella Mostoni, da série Constance: disse Mellors. Placas cerâmicas e agulhas de metal. 80 x 100 cm, 2019.
O projeto Adúlteras reúne um conjunto de trabalhos realizados com base em representações da mulher adúltera, encontradas na literatura de diferentes partes do mundo.
Desde 2012 até este momento, reuni 188 personagens coletadas na leitura de centenas de obras literárias, das quais extraio trechos que reescrevo em vários suportes, utilizando-me de sobreposições de histórias e sentidos produzidas na sucessão das minhas próprias leituras.
Comecei a colecionar personagens adúlteras e considerá-las matéria para o meu trabalho a partir do momento em que percebi a frequência do adultério feminino na ficção e a intensidade do interesse que despertava se comparado ao seu correspondente masculino.
Se “a literatura é a via que desce aos costumes”, como assinala Denis de Rougemont, essas personagens, que associam a mulher à sedução e à traição, refletem construções milenares de crenças sociocomportamentais, vinculando a mulher a uma educação exclusivamente voltada para a instituição do casamento e suas constrições sociais, que aqui se revela na linguagem, nos diálogos, na palavra.
A sobreposição das leituras me fez perceber situações congêneres nas quais o destino da adúltera e os modos pelos quais sobrevivia ou perecia derivavam da marca deixada por seu ato, gerada esta última pelos contextos social, histórico, geográfico ou autoral.
Existem várias acepções históricas de adultério feminino, a exemplo de transgressões de leis civis e religiosas, com punições que ameaçavam a vida da mulher culpada ou, caso sobrevivesse, deixava-lhe uma mancha indelével, frequentemente se aproximando de uma morte social.
No decorrer das leituras, percebi que o critério padronizado de adultério, a quebra do contrato matrimonial, já não era suficiente para a escolha das personagens diante de tantas variações que se manifestavam nas histórias. O melhor exemplo era Capitu. Eu hesitava em incluí-la no meu catálogo por nela ver a beleza da ambiguidade: nunca saberemos se foi adúltera. Relendo Dom Casmurro, contudo, percebi que o romance de adultério e a personagem adúltera, para serem o que são, prescindem da confirmação de uma traição conjugal. Essencial é a SUSPEITA que paira sobre a mulher, que lhe afeta a vida e o destino.
Cherchez la femme, cherchez la femme!
Il y a una femme dans toutes les affaires
Procurem a mulher, procurem a mulher! Há sempre uma mulher envolvida em todos os casos!
Alexandre Dumas pai, Les mohicans de Paris, 1854-59.
A crescente quantidade de leituras levou-me a elaborar um inventário em forma de tabela que listasse os nomes das personagens combinados com uma frase marcante das obras literárias que protagonizam. Com o passar do tempo, percebi que, além de um modelo de sistematização, eu tinha um trabalho artístico em constante andamento. Para nomeá-lo, assim como seus desdobramentos, escolhi uma famosa frase de um romance de Dumas pai, que reflete uma evidente disposição social em relação à mulher, popular nos séculos XIX e XX.
Para marcar no catálogo aconexão entre a existência de um adultério na vida de uma personagem feminina e sua sobrevivência física e social ou perecimento, classifiquei os diferentes desfechos segundo uma tabela de cores. A tabela é dividida em duas colunas: na primeira, os nomes das personagens ou como são mencionadas na obra e, na segunda, uma frase marcante dela da trama.
As legendas coloridas auxiliam a identificação das personagens de acordo com cinco critérios à esquerda e três à direita, baseados os primeiros nos destinos das adúlteras e os outros nas vozes das várias personagens, incluindo a minha, como leitora. Na coluna à esquerda, localizam-se, em ordem alfabética, os nomes das personagens adúlteras e seus destinos: as que permanecem, as que perecem, as que matam, as que se matam e as que são mortas. Na coluna à direita, a das frases, estão diferenciadas em três cores as citações das vozes da adúltera, as vozes de quaisquer outros personagens a ela relacionados e a minha voz silenciosa de leitora, em frases citadas ou inferências realizadas a partir da minha interpretação.
O cruzamento das frases, que gera várias possibilidades de leitura sobre aquele que é um dos temas de maior interesse para autores e leitores de todas as épocas, tem gerado no meu trabalho, a cada leitura, diferentes abordagens do adultério feminino. Nas palavras de um dos autores, Alberto Mussa, encontro a exata definição desse processo: “Os destinos, embora finitos, são inúmeros”.
› Mirella Mostoni, da série Cherchez la femme:
Thérèse Raquin e os verbos descitivos, Cerâmica, 35 × 34 cm, 2021.
› Mirella Mostoni, da série Cherchez la femme: Os estereótipos das experiências cruciais,
por Doris Lessing. Cerâmica, 24 × 39 cm, 2022.
Mirella Mostoni
Nascida em Castellanza, Itália, em1967, atualmente vive e trabalha em Sorocaba - SP. É graduada e mestra em Artes pela ECA/USP. Desde os anos 1990, participa de individuais, coletivas e salões de arte contemporânea, com obras em acervos de instituições públicas e privadas, sendo as principais MAMBahia e Sesc. A partir de 2012, desenvolve Adúlteras, projeto em andamento, focalizado nas personagens femininas encontradas na literatura de adultério de várias épocas e lugares. Por meio de procedimentos de leitura, coleção de personagens e apropriação, realiza séries de trabalhos sobre vários suportes, como escultura em cerâmica, desenho, instalação, livro de artista e impressão artesanal. Leciona desde 2014 no curso de Licenciatura em Artes Visuais na Universidade de Sorocaba (UNISO).
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