aprendizados minerais, caos e escuta
— Janaú
› Still da curta-metragem Bioma. 2024. Direção de Porañ Puri, filmado em Pindamonhangaba(SP).
Foto: Rafa Santiago.
› Uma obsidiana vinda do México. 2020.
Foto: Acervo pessoal.
Estou sentada em frente a um espelho de obsidiana que teimosamente pousou aqui. Esse espelho pode me conduzir a lugares profundos e me mostrar a sombra do tempo, que é parte da minha sombra também. Eu pergunto a essa pedra o que ela tem a me dizer, mas ela me desafia com o silêncio e me pede “escute”. O reino mineral é grandioso, e, entre esses seres que chamamos “pedras”, a obsidiana me toca especialmente, e nossa relação é antiga. Ela, uma pedra negra que surge de bolhas de ar em meio à lava vulcânica, ao ser vista ao microscópio, apresenta um padrão caótico, diferentemente dos cristais com suas estruturas geométricas perfeitas.
Do universo mineral, são elas as que mais facilmente conversam comigo e já não me lembro ao certo como isso começou, mas ter ido ao México e vir acompanhada de algumas delas abriu um horizonte relacional que eu desconhecia anteriormente. Afinal, as pedras falam. Assim como tudo aquilo que existe. Pode parecer estranho começar este texto falando sobre comunicar-se com pedras, mas, se esse é um exercício que se pretende outro – que não o hegemônico –, é preciso ampliarmos nossas compre- ensões de mundo.
As obsidianas são pedras que habitam o caos e, desse modo, falam de caminhos, pois não há caminho sem o caos, é ele que desorganiza para organizar, e assim sucessivamente. O exercício de criação artística me parece ser essa conversa em busca de construir caminhos que não necessariamente levam de um ponto a outro. Ao acionar outras realidades, como falar com uma pedra, posso viajar no tempo e habitar o caos que desorganiza as estruturas inconscientes e subjetivas marcadas pela colonialidade. Um tempo que se constrói em espiral, e nesse estado posso conversar com meus ancestrais Tupi, posso sê-los em minha corporeidade, posso habitar a sombra do tempo, porque ela também sou eu.
Um dos usos do espelho de obsidiana é observar o sol sem queimar a retina, mas o que agora vemos atravessar a pedra não é mais o sol corriqueiro do cotidiano comum, ele agora é o sol que minha ancestral olhava em uma tarde quente na Amazônia. Como uma pessoa em resgate étnico indígena, nascida na cidade do Rio de Janeiro e distante de meu território ancestral na Ilha de Marajó (PA), foi preciso criar possibilidades de resgate de algo que não está presente nos arquivos históricos, em documentos públicos ou no mercado da arte. Foi então que passei a acionar outras tecnologias humanas e tradicionais entre meus antepassa- dos, como o sonho, a relação com os seres não humanos e a fabulação. Nessa busca por um Norte, que aqui se grafa com N, remetendo à região Norte, abandonei a Academia e me lancei à deriva de aprender com as coisas e o tempo das coisas. Esse percurso tem ancorado boa parte da minha produção artística e literária nos últimos anos, que se potencializa na minha chegada a Ubatuba, litoral norte de São Paulo, em 2016.
Território ancestral de alguns povos que era, no século XVI, ocupado em sua maioria pela nação Tupi, apareceu como cenário das memórias de Hans Staden, um alemão aprisionado pelos Tupinambá, que intencionavam submetê-lo ao ritual antropofágico, mas, em algum momento, consegue fugir de seu cativeiro. Há quem prefira a versão de que o germano era covarde demais para ser comido, o que teria prolongado o tempo que ficou preso e consequentemente favorecido sua fuga. Fato é que esbarramos a todo momento na memória indígena do território, vista sobretudo nos hábitos dos caiçaras – a mistura dos primeiros portugueses chegados na colônia com os Tupi do litoral que conservou uma série de práticas, como a canoa tradicional, os hábitos alimentares, a relação comunitária com o que se chama de natureza, entre outras sobrevivências.
› Ativação da obra Tekó Unsylent Y (2021) colab de Janaú e Aldeia Tabaçu Reko Ypy, realizada na Marres House of Contemporary Culture em Maastricht/ND. Foto: Bob Van Horn.
Há na cidade uma história que afirma que, antes de morrer, Cunhambebe Tupinambá, que liderou a Confederação dos Tamoios contra os portugueses, lançou uma maldição dizendo que “nestas terras nenhum negócio de branco prosperará”. Essa memória é comumente trazida quando algum comércio fecha ou casais vindos das capitais se separam quando passam a morar na terra das canoas. Outro fator digno de nota é a enorme presença de estúdios de tatuagem na cidade, que só perdem para as farmácias.
O que explicaria uma cidade pequena, com seus 80 mil habitantes espalhados por um território de enorme extensão, ter tanto interesse pela tatuagem? Levantei essa questão com um amigo tatuador que viveu por alguns anos na cidade e suspeito que haja algo da memória ancestral do território que remete à pintura corporal. Não à toa, o Brasil é conhecido mundialmente como uma grande referência na tatuagem, pintar o corpo, portanto, seria parte de um inconscien- te coletivo relacionado aos povos originários do território.
Quando passei a retomar certas práticas como a pintura com o jenipapo e o urucum, meu desejo por me tatuar foi progressivamente diminuindo, e com o tempo a abundância da Mata Atlântica também invadiu minha poética e criação artística. Esse transbordar da terra (e águas, muitas águas) sobre os corpos é algo sentido por todos os humanos que habitam Ubatuba, não há como passar incólume por ela. E o olhar que teço quando penso na arte produzida aqui relaciona-se, sobretudo, aos fazeres das culturas vivas da cidade, caiçaras, quilombolas, indígenas, malucos de estrada, turistas, migrantes. Apenas cerca de dez por cento dos habitantes da cidades são originários do território, profundamente transformado desde a criação da Rodovia Rio-Santos. É, portanto, uma cultura que se manifesta na diversidade e no movimento diante da imensidão natural. Um território partido por uma rodovia é fluxo, convida o tempo a falar e para muitos é apenas um ponto de passagem, para outras pessoas como eu – partidas em sua própria história pessoal, é um convite à escuta.
› Still da curta-metragem Bioma. 2024. Direção de Porañ Puri, filmado em Pindamonhangaba/SP.Foto: Rafa Santiago.
› Performance Verbo-barro I de Janaú no Seminário Corpos Estranhos, realizada na UFRJ - Instituto de Letras, Rio de Janeiro, RJ. 2019. Foto: Inês Nin.
Eu agora pouso o espelho no ouvido à moda de concha e refaço as histórias que me conta- vam em outra Era, meu primeiro livro de poesias Atlântida (2019), escancara essa escavação. Para nós, descendentes de povos indígenas sem acesso direto à própria memória originária, a criação artística pode ser um campo fértil de reflorestamento de imaginários. Assim, é possível contar as histórias que nunca ouvi e surgem traduzidas em poemas, performances e insta- lações que falam de tempo, escuta, memória e uma relação comunitária com a natureza.
Em mais um movimento mágico, pouso o espelho de obsidiana no olho direito e vejo a canoa Tupi do brasão da cidade descer o rio Indaiá em direção ao Perequê Açu; de lá, outras canoas se somam, de diferentes tempos humanos e seguem em direção ao monumento Paz de Iperoig, na praia do Cruzeiro.
Lá, na força do canto, derretem a estátua do português e de José de Anchieta, deixando o parente Tupi livre para voltar para casa. “Que cada um se atenha a seus assombros”, disse-me uma amiga dia desses, então fabulo uma terra que possa se haver com seus despojos de guerra e com sua memória, através da arte.
Que os artesãos e artistas visuais da cidade possam somar esforços em confluência – palavra tão cara atualmente, fazendo, quem sabe, um contrafeitiço à colonialidade que ainda se impõe como monumento.
A última obsidiana que me acompanhava pediu para ser enterrada. Ela agora gesta algo na terra, eu sigo observando as marés, as mudanças impostas pelos humanos à natureza que placidamente aguarda o seu tempo de retorno. Troco de pele mais uma vez e tomo nota:
PERGUNTAR À PEDRA COMO NAVEGAR
ENCOSTAR OS OUVIDOS EM SUA EPIDERME
FALAR COM O TEMPO ANTES DO TEMPO
RESPIRAR A DOBRA QUE ESCONDE O SILÊNCIO
FAZER DA PELE TESTEMUNHA
ANFÍBIA
RISCAR UM MAPA Y ABANDONÁ-LO
Em alguma medida, foi preciso me deixar atravessar de tal modo pelo caos que no limite fui também ele. E esse também é um dos aprendizados das pedras.
Janaú
Janaú é carioca de raiz amazônia, atualmente vive em Ubatuba. Poeta, artista multilinguagem e educadora, é mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de janeiro (UERJ) e tem publicações em livros, antologias, revistas eletrônicas, catálogos e participação em exposições de arte. Nos últimos anos, vem realizando edição em literatura de autorias indígenas. É curadora do selo "Margaridas", voltado para autoria de mulheres indígenas. Pesquisa a linguagem, as relações étnico-raciais na educação e os saberes originários de Abya Yala. Integra o coletivo Sarau Urukum.
Comments