A VIDA É MAIOR QUE O BURACO EM QUE/DO QUAL NASCEMOS.
— renat castillo
Sou filhe de um imigrante hondureño e venho, através de minha produção artística, costurando memórias que sofreram processos de etnocídio pela construção e pela reconfiguração de corporeidades mais-que-humanas. Estas operam dimensões do tempo da terra em colaboração com fungos, bactérias e outros seres; suas qualidades físicas, nutritivas e espirituais.
Tenho trabalhado com diferentes perspectivas sobre la muerte y la memoria, junto a formas de compostar e germinar imagens elaboradas entre corpos e paisagem que fertilizem imaginários, tentando inverter perspectivas para traçar caminhos de possibilidade de existência sobre esta Pacha1 em contraposição ao trauma que o capitalismo, o patriarcado e o racismo caus(ar)am.
› renat castillo, Detalhe da obra (braço) 'exoesqueleto de bambu'
Foto: Lara Chang
› renat castillo,
'exoesqueleto de bambu', 2023
Ripas de bambu tuldoides, fio enceradoe barbante em bambuzal de guadua angustifolia Instalação site specific realizada naResidência Terra Saúva, em Botucatu(SP). Foto: Lara Chang
› renat castillo,¿como olvidar el trauma cuando el trauma es el proprio olvido?, 2023. Barro das margens do tietê, líquens e fungos em casca de árvore, matéria orgânica seca e semente de abacate. Instalação site specific realizada na Residência Terra Saúva, em Botucatu(SP). Foto: Lara Chang
› renat castillo, fotoperformance 'madeira I' da série sucumbir, 2022. Foto: acervo pessoal
› renat castillo, fotoperformance 'madeira III' da série sucumbir, 2022. Foto: acervo pessoal
A pesquisadora e ativista Silvia Rivera Cusicanqui, em seu livro Chichinak Utxiwa, traz a noção de “Pachacuti”, “reviravolta do tempo”. Quero pensar essa leitura del tiempo como possibilidades de encarar esse futuro de enfrentamento à crise climática e político-social. Os processos aqui descritos envolvem trânsitos e relações entre urbano e rural, artesanal e tecnológico, no mapeamento, na coleta, na produção com barro e nos trabalhos criativos e coletivizados que são nutridos pelas discussões e pelos saberes perdidos da agricultura, da astronomia, das histórias orais, coletivas e pessoais, ficcionais ou não.
Para que essa terra ferida/fenda que tenho entre as pernas transmute em armaduras, formas que moldam e protejam corpos que miram a tentativa de resistir à captura das vidas. Por meio de
certa autoetnografia, sigo na tentativa de recriar pontes de memória genética, debruçando-me sobre as diversas manifestações de vida presentes nos biomas que habito no planeta Terra e suas formas de morte e decomposição. O trabalho é atravessado por um processo de deserção de gênero, em que busco fugir de capturas binárias dicotômicas, como homem e mulher, masculino e feminino.
A série sucumbir parte de uma pesquisa da pai- sagem rural mantiqueira paulista, feita quando vivi durante quatro anos em Monteiro Lobato. Esse ensaio com madeiras trata de interações com diferentes dimensões da ocupação humana no contexto rural, ativando incorporações por meio de extensões, próteses e mimeses. Busquei experimentar o deslocamento do protagonismo
de meu corpo em relação às outras presenças na imagem e nas composições entre posturas, enquadramentos e luz que deslocassem parâmetros de generificação óbvios e evidentes à lente colonial cisgênera.
Já em Botucatu, onde se situa a residência artística Terra Saúva, em que estive imerso durante um mês, é uma região de Cerrado cujo bioma foi praticamente extinto e tem também obliterada sua ancestralidade indígena. Na base do que chamam de “pedra do índio”, há uma pequena horta; sobrevivem ali alguns pés de milho. Há tempos venho pensando e percebendo o alimento como vínculo essencial à sobrevivên- cia humana que diz de processos de interação interespecífico. Em meu caso, o pouco conhe- cimento cultural a que tenho acesso da parte
de minha ancestralidade centro-americana vem através da alimentação: plantas como o abacate, los plátanos y frijoles fritos, tortillas de maíz.
Passei a elaborar uma pesquisa em performance que queria que fosse celular, interno, pela quebra de moléculas, redução e transformação da matéria; pela digestão. Nesse processo, passo a germinar algumas sementes e me lembro: pouco antes de minha avó morrer, meu tio Amílcar falava sobre como seria o velório, com aguardiente y café. Vivi ali outra relação mais despojada com a morte; como parte da vida, e não seu oposto; decidi realizar a oferenda de alimento y funeral de um corpo, junto ao público, num ritual não conven- cional de enterro e plantio.
› renat castillo, fotoperformance 'madeira II' da série sucumbir, 2022. Foto: Acervo pessoal
Nesse deslocamento da imagem de meu corpo da obra2, no trabalho que desenvolvo lá, manufaturo a partir do bambusa tuldoides; crio a partir da escala do meu próprio corpo uma armadura, um “exoesqueleto de bambu”. O bambu tem densidade semelhante a de nossos ossos. Desloco sua característica daquele que estrutura e sustenta para o que é sustentado e dá contorno. Esse corpo sem cabeça3 é posicionado no centro de um bambuzal de outra espécie (Guadua angustifolia). A genital se torna um vazio.
Decido, paralelamente, modelar uma cabeça de barro com o apoio de Lícida Vidal, artista e ceramista com quem compartilhava o ateliê, y fui entenden- do sobre a memória do barro, o tempo de secagem e a redução das peças, a relação com as dimensões que gos- taria, e decido criar uma cabeça partida ao meio com elementos vazados e furos para que seu fechamento seja com costura em arame. Gravo em cada uma das orelhas a seguinte frase dividida, que nomeia a obra: ¿cómo olvidar el trauma / cuando el trauma es el proprio olvido? Ao vesti-la, queria experimentar e escutar a relação divi- dida da própria consciência4, de ser descendente de ancestralidades dis- tintas que se contradizem na memória material. Na borda da área de sombra desse bambuzal, dentro da cabeça de barro, foi plantada uma semente de abacateiro (espécie nativa da América Central) na região do cérebro, que germinou e virou muda após alguns meses – ela segue crescendo.
Confio que as raízes e os micélios recriarão essa conexão decapitada, por meio de processos simultâneos de decomposição e enraizamento. Essa operação também configura uma noção expandida de corpo, toma a escala do humano, mas cria uma cor- poreidade compartilhada com plantas, fungos, a terra e o tempo. Permito que as duas metades dessa cabeça se unam alimentando a semente.
Para apresentar as obras ao público, preparo um aperitivo com o broto de bambu tuldoides da mesma touceira de onde colhi para cortar as ripas para a instalação, guacamole, banana-da-terra frita, umas tapiocas de man- dioca ralada, amendoins e café. Queria que, ao chegarmos às instalações, o bambu e o abacate estivessem também dentro de nós. Quanto à cabeça de barro, rego-a enquanto leio o poema AVOZ Y LA MUERTE5.
Cusicanqui traz uma imagem de Poma de Ayala que tem reverberado em mim há tempos: a do “índio, astrólogo, poeta que sabe del ruedo del sol y de la luna, eclipse, estrellas, cometas y hora, domingo, mes y año y de los cuatro vientos para sembrar la comida, desde antiguo”. Como essa expécie6 de artista filósofo que venho tentando ser junto a esse corpo com útero (que carrega e dissemina sementes), opero no desejo de fertilizar lugares de saúde e resiliência aproximando formas de existência dissidentes do sistema sexo-gênero – que muitas vezes dependem da migração para grandes centros urbanos para sobreviver, o que nos distancia da relação com a terra e seus ciclos – das formas de vida fúngicas – que não se reproduzem de forma sexuada. Essa corpa passa a compor uma arqueologia de afetos, em que escavo, crio fendas, gravo e reescrevo histórias no chão em que piso, transmitindo memória por seus trânsitos tortos y desnorteados.
NOTAS
1 Do quéchua, “terra”.
2 Ainda insistentemente lido como “femenino” quando nu.
3 O corpo é descabeçado em referência a algumas imagens de Poma de Ayala que Silvia Rivera traz na obra citada.
4 Em um texto com esse nome, Anzaldúa traz a noção de “consciência mestiza”.5 Este poema estará disponível na publicação do Programa Habitar os Vínculos da Residência Terra Saúva.6 Neologismo que crio ao escutar de um artista que pessoas transgênero são uma “espécie” que não existia “nos tempos dele”.
renat castillo
Artista visual e educador, mestrando em Estudos Contemporâneos em Artes pela Universidade Federal do Sul da Bahia- UFSB. Filho de imigrante hondurenho, em sua pesquisa vem tentando costurar conexões entre identidade, memória e pertencimento, criando corporeidades mais que humanas a partir de elementos orgânicos e próteses coletadas, dando contornos a memórias de uma ancestralidade e práticas sociais que sofrem processos de etnocídio pela criação de videoperformances, fotografias e instalações.
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