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Editorial — no1 | Mulheres nas Artes Visuais


— Célia Barros


Mulheres nas Artes Visuais

Diz-se do que não é aparente. Que permanece oculto ou encoberto, existindo de forma adormecida, reprimida ou subentendida, disfarçado até. Latente porque não está visível ou porque não conseguimos enxergar? Que camadas precisamos atravessar para alcançar a dimensão do visível na produção artística contemporânea?


Publicar implica propagar, tornar público, palpável, visível e audível, dando início ou continuidade a interlocuções que possam se articular entre si e amplificar as percepções.


Morar e/ou atuar nas artes visuais no interior do estado de São Paulo afeta a forma como seu trabalho será percebido. Mas, antes ainda, ele terá de ultrapassar a barreira da visibilidade, pois na tradição artística o que deve ser visto está nas grandes instituições, estas se encontram nas capitais, e é para lá que todos os olhos se voltam, uma e outra vez, enquanto tudo o resto deixa de existir.


Existimos, no entanto, e persistimos com um olhar exclusivo para os interiores, litorais, vales, planaltos, serras e beira-rios do estado de São Paulo que serpenteiam diferentes olhares a partir dos seus contextos de criação e produção, no intuito de promover articulação entre regiões, artistas, práticas e demais trabalhadores da cultura.


O viés temático de cada edição nos ajuda a perscrutar questões que nos parecem pertinentes nas criações atuais e nos modos de produzir e pensar cultura fora da capital.

Assim, nossa primeira edição chega em abril, mês que dá continuidade à luta pelos direitos das mulheres, reivindicando a presença das Mulheres nas Artes Visuais.


Cada edição conta com uma CHAMADA ABERTA para ensaios textuais e visuais, visando ampliar nossas redes de articulação.A chamada aberta é uma forma de escutar o que não prevemos, por esse motivo procuramos não deli- mitar demasiado os formatos, para expandir as poéticas. Para além da seleção, esse chamamento nos permite estar à espreita, atentas ao porvir. Agradecemos desde já a todas as contribuições, divul- gações e provocações que nos ajudam a expandir olhares.


Assim, a partir da seleção de Bella Tozini, Gomagrupa, Mirella Mostoni e Lícida Vidal, foi necessário debater com cada uma como a participação delas se daria na composição da revista. Perante o considerável número de inscrições, nossa decisão se pautou pela diversidade e pela abrangência de linguagens e postulados, procurando respeitar a amplitude do que significa ser mulher. Consequentemente, pela própria característica de se tratar de uma publicação periódica, consideramos que as obras que utilizam as manualidades dos têxteis têm tido outros lugares de visibilidade, assim como as vulvas ou os espaços da intimidade e outras formas de materialização que têm sido extremamente relevantes para a construção da legitimidade das produções femininas e a ampliação do fazer e ver artístico.

A poesia visual e cerâmica de Mirella Mostoni atravessaa Revista Latente com seu projeto “Adúlteras”, que desenvolve desde 2021, a partir da relação com a literatura, em especial os clássicos de origem ocidental e europeia. Para nós, foi importante entender a produção feminina para além do corpo, dos nossos dilemas mais comuns e reiterados.


É assim que Lícida Vidal, fiel à sua pesquisa que envolve territórios, insere na revista seu anúncio libertário: “Oportunidade! Porteira Aberta” é um gesto site specific de quem vive e percebe a paisagem do interior sempre à venda, resistindo sob pressão ao sucateamento imobiliário ou extrativista.


Gomagrupa é uma coletiva quena sua atuação reforça algo que para nós é relevante: estar em grupa, atuar junto, pensar junto, se alterar junto, tema que vamos desdobrar em outros espaços desta revista e provavelmente nas próximas edições.


Falar de mulher é falar de corpo? Como escapar desse lugar a que a história da arte e das nossas experiências de vida nos remetem uma e outra vez? As fotografias de Bella Tozini são fruto de uma metodologia do encontro que cruza processos de resistência com criação de autoimagem, em que “corpos crus” nos olham e se permitem ser vistos em seu trânsito pela vida.


Neste primeiro número composto exclusivamente de mulheres, contamos com as colaborações textuais das pesquisadoras convidadas Valquíria Prates e Camila Fontenele para  a seção CONTEXTOS, que pretende olhar para o tema proposto a partir das cenas locais que cada uma das autoras habita. Ambas exploram os processos criativos a partir de realidades e contextos de produção totalmente diversos, ainda que em profunda relação com o território de cada artista. Nessa seção, a artista Janaina Vieira também aceitou nosso convite e produziu o ensaio visual “Faço brincando”, que, voltando ao espaço doméstico onde nos acostumamos a ver o feminino, perpassa-o pelo raciocínio lógico inerente aos jogos de montar que nos livram de qualquer gênero condicionante logo na infância.


Com muita generosidade, Cristine Takuá nos concedeu uma PROSA em que aborda a complexidade da mulher artista no contexto indígena, oferecendo muitas chaves para compreender o gesto artístico para além de uma objetualidade, uma fetichização ou até um sistema mercadológico das artes, a partir de uma teia de relações em que vida, arte, educação e espiritua- lidade se entrelaçam para acessar o Teko Porã, que, segundo Cristine, é “a boa e bela forma de você ser e estar no seu tekoa, no seu território”.


EM FOCO com o projeto Cansei, Larissa Isis contribui para a discussão desta edição usando a fotografia para falar do cansaço que exaure especialmente as mulheres pretas. É triste e desesperador, mas precisamos seguir falando sobre isso: seu projeto iniciado em 2014 continua dando voz a cansaços que dependem de todes nós para cessar.


Dar visibilidade ao que está latente para nós implica DESLOCAMENTOS. Nessa seção, tendo como tema Mulheres nas Artes Visuais, não poderia deixar de falar de um assunto que me constrói diariamente como mulher, artista e agente cultural do interior: o GT Mulheres da Cultura São José dos Campos. Sendo um grupo de mulheres das mais diversas áreas criativas, muito além das artes visuais, por sua atuação política, articuladora e de acolhimento, tem sido um diferencial na forma de entendermos nosso posicionamento nas artes, capaz de agregar feminismos diversos em prol de pautas comuns.


É abril, e estamos muito longe ainda de onde poderemos estar. A luta é diária, e as transformações internas que precisamos acessar são desafiadoras, mas urgentes e mais que necessárias diante da reação conservadora que o mundo atravessa. Ainda nessa seção, Gabriela Leirias, que também faz parte do núcleo editorial, propõe-nos um aprofundamento sobre algumas questões que a Revista Latente quer levantar, caracterizando os trânsitos que aqui propomos a partir da categoria Lugar, uma espacialidade do microcosmos que nos permite conectar “com uma dimensão existencial da corporalidade e do cotidiano, da cena local, mas também com o regional e com o global”.


Em um mundo à beira do desastre ecológico, por que insistimos nas estradas suicidas que nos direcionam para o êxodo da nossa própria vida?


Acreditamos que olhar para além das capitais, valorizar as existências entre serras, vales e rios, tornar pública a sua legitimidade é contribuir para a descentralização que tanto precisamos fazer acontecer.

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