Editorial — Arte e transformação social
- Célia Barros

- há 2 dias
- 4 min de leitura
— Célia Barros e Gabriela Leirias

Publicar é um dos modos de tornar visível o que está latente, potencializar o manifesto e oportunizar diálogos, expandindo as experiências e conexões de cada projeto.
Chegamos à 6a edição da Revista Latente investigando mais uma vez as possibilidades e experiências de transformação por meio de iniciativas do campo das artes.
Se nas edições 4 e 5 nos debruçamos sobre os temas Saúde e Educação e suas conexões com as Artes, deixando explícita a capacidade de provocar movimentos íntimos e coletivos a partir de processos artísticos, neste número a intenção é abraçar a hipótese de que a transformação social não é um “resultado” da arte; ela pode se presentificar nas irrupções, fricções, ficções em diferentes escalas que as práticas artísticas inauguram ou experimentam.
A arte pode operar muitas vezes nesse intervalo: onde ainda não há política de Estado, nem lei, nem programa, nem linguagem fixa; a arte ensaia futuro, experimenta, expõe, tateia possibilidades, se incomoda e desacomoda, procura caminhos, quase sempre, antes de o mundo estar preparado para acolher a tentativa.
Que imagens, textos, reflexões e ações têm produzido essas microirrupções?Que práticas tateiam as possibilidades que podem ser acolhidas como mudanças? E que transformações são perceptíveis fora do eixo consagrado, onde o investimento simbólico e financeiro não costuma chegar? O que se move nos interiores, nos litorais, nos vales, nas aldeias, nas bordas metro politanas, nas franjas da política cultural? Como essas ações podem adquirir centralidade ou, melhor, multiplicar os centros?
Maria Luiza Meneses atua em curadoria, pesquisa e gestão cultural e, na interseção dessas esferas, transita entre instituições de grande porte e as políticas culturais de Mauá, cujo alcance pode parecer diminuto se esquecermos o número de munícipes1e a relação direta que os equipamentos culturais de uma localidade estabelecem com a saúde pública e com a educação.
No seu texto, Maria Luiza discute a gestão participativa no poder público a partir do caso da Pinacoteca de Mauá, situando essa experiência no contexto mais amplo do SNC (Sistema Nacional de Cultura),de modelo inspirado no SUS e que prevê participação da sociedade civil por meio de conselhos, planos e sistemas de cooperação entre municípios, estados e União.
Numa interlocução muito próxima, a Residência Casco é uma iniciativa artística e educacional que integra arte, território e comunidade em contextos rurais e periurbanos, atualmente sediada no chamado território do Pós-Balsa, conglomerado de bairros rurais em São Bernardo do Campo (SP). Por meio do diálogo entre artistas, pesquisadores e moradores, a Casco desenvolve práticas colaborativas que fortalecem vínculos locais, visibilizam disputas territoriais e refletem sobre o papel da arte na preservação cultural e ambiental da região, ao entorno da represa Billings. É também um ambiente fértil de criação e experimentação de poéticas artísticas situadas.
Numa PROSA intensa, Nenesurreal compartilha sua trajetória marcada por resistência, ancestralidade e afirmação da mulher negra periférica nas artes urbanas na região de Diadema (SP). A artista expressa a sua luta por visibilidade no Graffiti, enfrentando racismo, machismo e etarismo dentro de um meio ainda dominado por homens brancos e reflete sobre as transformações socias nesse ambiente por meio da luta feminista.
Na seção LATITUDES, que a cada edição pretende investigar projetos de âmbitos nacional e internacional que dialoguem com a proposta da Revista Latente, Célia Barros aborda como a arte pode ser um instrumento de resistência, transformação social e reconstrução coletiva. Inspirado nas arpilleras chilenas, o coletivo de mulheres do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) adota, desde 2013, o bordado coletivo como metodologia de formação política, denúncia e fortalecimento da autonomia das mulheres afetadas por danos consequentes da operação de barragens e por desastres socioambientais no Brasil. As arpilleras se tornam uma linguagem do sensível capaz de expressar, por meio da arte têxtil, traumas e violências invisibilizadas, permitindo às mulheres reconstruírem vínculos, identidades e territórios.
Ainda nesta seção, Gabriela Leirias, do núcleo editorial da Revista Latente, se junta à artista mexicana Gabriela León para, a quatro mãos, suscitar reflexões sobre comunalidade, interdependência ecológica e práticas de cultivo como política e estética, tudo isso a partir da experiência da comunidade Cochera en Servicio, em Oaxaca, México –um “jardim coletivo” que compartilha alimentos, sementes, saberes e formas de vida. Ancorado nos princípios indígenas de co-munalidade (território, assembleia, tequio e celebração), o projeto articula relações de reciprocidade entre plantas, humanos e território, contrapondo‐se à lógica capitalista e às monoculturas. O encontro das duas autoras ativa trocas transnacionais (como o cruzamento do milho guarani com o palomero mexicano) e explicita como práticas agrícolas, artísticas, espirituais e políticas se imbricam, produzindo metodologias coletivas de transformação social, cuidado radical e imaginação do comum.
Na seção EM FOCO, Felipe Marcondes da Costa analisa a trajetória e a obra do artista Alberto Duvivier Tembo, destacando sua reflexão crítica sobre a relação entre arte, natureza e ética diante de avanços científicos como a clonagem e a desextinção. Utilizando materiais orgânicos e processos naturais, Tembo aborda a vida em sua vulnerabilidade e força regenerativa. O texto traz uma perspectiva crítica e um pouco irônica com relação ao desejo de dominar a natureza, sugerindo uma desaceleração, um respeito maior com os recursos limitados e, consequentemente, com o limite do mundo, e, do ponto de vista político, uma oposição frontal ao neoliberalismo e seu negacionismo quanto às mudanças climáticas.
Em POÉTICAS, Marília Scarabello apresenta o ensaio visual A Terra Vale o que Ela Produz, com o qual questiona o uso da terra e o sistema especulativo que se apropria dos territórios, convertendo-os em capital. Num jogo imagético que mistura materialidade da terra, códigos estéticos e QR code, a artista, que vive em Jundiaí (SP), transporta-nos para certo limbo em que no mundo é preciso se situar para resistir.
Longe de fixar a arte nos seus lugares de privilégio, experimentamos um caminho editorial–curatorial para caminhar atentas às múltiplas paisagens, vozes, expressões e narrativas que podemos construir (talvez coletivamente) rumo aos desejos e entendimentos que fluem como transformação social. E, como todos os números anteriores pretendem, esta publicação é uma nova aproximação do tema, para aberturas de debates, e não fechamentos.
NOTA
1 Com 418.261 habitantes (Censo 2022), Mauá é o 15° município mais populoso do estado de São Paulo, e o 57° município mais populoso do Brasil.





Comentários